O conceito de infância nem sempre foi o mesmo, ele foi construído social e historicamente. Assim sendo, a criança nem sempre foi considerada uma pessoa com características e necessidades próprias, sendo considerada apenas como um adulto em miniatura. Entretanto, como bem sabemos, por meio da noção de desenvolvimento, a infância passa a ser considerada uma sucessão de fases intelectuais e emocionais na qual a criança, girando em torno da inocência e da fragilidade, passa a ser vista como um indivíduo que precisa ser protegido e preparado para se tornar um adulto. Na virada do século XIX para o século XX, a infância chegou a ser considerada como um direito inato de cada pessoa, um ideal que ia além da classe social e econômica. A infância veio a ser definida como uma categoria biológica, e não somente um produto da cultura. No entanto, durante esse mesmo período, esse conceito começa a entrar em declínio.
E em que meio poderíamos observar isso com mais clareza do que na televisão? Nela, a linha divisória entre infância e idade adulta vem sendo erroneamente desfeita de três maneiras, todas elas relacionadas com sua acessibilidade à informação de forma indiferenciada: primeiro, porque não requer treinamento para apreender sua forma; segundo, porque não faz exigências complexas nem à mente nem ao comportamento; e terceiro, porque não segrega seu público. A televisão, então, tem o poder de inventar e reinventar a realidade, criando uma “verdade” em torno de determinados temas, como as questões da sexualidade, por exemplo, na qual as crianças são seduzidas pelas imagens e por representações sobre esses temas, que são vivenciadas de forma diferente por meninos e meninas.
Perigosamente, a televisão revela segredos, torna público o que antes era privado. É uma tecnologia com entrada franca, para a qual não há restrições físicas, econômicas, cognitivas ou imaginativas; tanto crianças de seis anos quanto pessoas de 60 estão igualmente aptas a vivenciar o que a televisão tem a oferecer. Por esse motivo, o direcionamento ao público infantil vem crescendo a partir da década de 80, e a partir desse momento a indústria cultural passa a conceber o público infantil como consumidor em potencial, crescendo o número de programas televisivos voltados a ele (80% da influência de compra dentro de uma casa vem das crianças, por isso a maioria das propagandas, como as das operadoras de celular e as de carro, sempre colocam uma criança ou algo que as chame atenção). Como os pais costumam não ter muito mais tempo para os filhos, a TV faz o papel de uma conveniente “babá eletrônica” que os mantém quietos enquanto eles trabalham ou se ocupam com os afazeres domésticos e os faz companhia, prometendo-lhes felicidade.
De acordo com estudos realizados pelo Instituto Alana, as estratégias mais comuns para induzir ao consumo no horário comercial são: a publicidade convencional, o licenciamento de personagens da TV e cinema para atrelar sua imagem ao produto, e a utilização de “brindes” nos pontos de venda - que muitas vezes exigem complemento em dinheiro. Segundo pesquisas do Ibope, o mercado de produtos destinados a crianças e adolescentes movimenta hoje cerca de 50 bilhões de reais por ano.
Como a televisão é a principal mídia utilizada pela publicidade, pode-se imaginar o impacto que ela causa sobre o público infantil, já que as crianças passam, segundo pesquisa realizada pelo Instituto Alana, cerca de 5 horas por dia assistindo à sua programação, colocando o Brasil em primeiro lugar no ranking mundial. Por isso, a Suécia faz o seu papel, proibindo propaganda dirigida à criança na televisão antes das 21 horas, assim como a Alemanha, que proíbe que programas infantis sejam interrompidos pela propaganda, e vários outros países que também possuem legislação que limitam a propaganda para crianças. Mas, e o Brasil? Atualmente, o uso de crianças e adolescentes em anúncios é autorizado dentro dos limites legais e éticos, mas essa permissão pode estar em risco. Tramita no Congresso há 12 anos o projeto de lei 5921/2001, que proíbe expressamente a publicidade e a propaganda para a venda de produtos infantis. O documento já foi apreciado por três comissões da Câmara dos Deputados e segue para a avaliação da CCJ (Comissão de Constituição e Justiça), que verifica se o texto está em conformidade com a Constituição Federal.
Voltando à questão da sexualidade, outra grande arma que a mídia utiliza, e que contribui drasticamente com o desaparecimento da infância é a erotização precoce. Considera-se precoce tudo que acontece antes da fase em que a criança esteja dentro da faixa etária correta para determinado estímulo, considerando-se que, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, uma pessoa de até 12 anos ainda é uma criança. Ou seja, se algo que é sugerido ou estimulado estiver fora dessa faixa, pode trazer problemas, pois esse tipo de estímulo é prejudicial e deixa a criança confusa, já que são informações de difícil compreensão, principalmente quando atrelado a produtos comercializáveis.
Um excelente exemplo disso foi a polêmica e bem conhecida campanha feita pela marca Couro Fino para o Dia das Crianças. Nessa campanha, como você pode ver acima, a marca super erotiza uma criança, colocando-a em poses sensuais e carregada de maquiagem, acessórios e até salto alto. A respeito disso, o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) recebeu mais de 100 queixas contra as imagens, sendo obrigado a notificar a Couro Fino e abrir um processo para analisar a campanha. Para tentar se defender, a marca escreveu isto.
A estimulação para a sexualidade de maneira antecipada também pode trazer sérios problemas psicológicos a médio e longo prazo nas crianças, como: antecipação da menstruação nas meninas, gravidez precoce, doenças sexualmente transmissíveis, distúrbios alimentares, baixo desempenho escolar, banalização da sexualidade (o acúmulo de cenas sexuais na cabeça delas faz com que aprendam a ver o sexo de maneira banal, como uma prática que se deve fazer porque todos fazem, e não pelo significado pessoal que se possa ter), entre outras graves consequências, como o aumento da pedofilia.
A influência da televisão em torno da sexualidade infantil também tem mostrado uma forte tendência a caracterizar o estereótipo masculino e feminino. Assim, violência torna-se critério básico para a masculinidade e a valorização da beleza e apelo corporal torna-se foco da verdadeira feminilidade. Há ainda uma tendência a explorar a imagem da mulher-objeto. O consumo exagerado, que a mídia expõe como características essencialmente femininas, torna-se um dos requisitos para que as mulheres tornem-se objeto de desejo.
Como resultado disso, observamos diversas crianças pulando fases do seu desenvolvimento, maturadas à força, muitas vezes incentivadas e apoiadas em todas as instâncias do seu convívio, como na família e na escola e na sociedade em geral. Isso acarretou na volta dos adultos em miniatura. Não negue: você já deve ter visto pelo menos uma criança que se veste como adulto (de salto, maquiagem e tudo), o que é realçado nos comerciais, que prefere ganhar dinheiro e roupas do que brinquedos (basta assistir ao Bom Dia e Cia) etc.
Para saber mais (e, por favor, queira saber mais), assista a este vídeo que mostra muito bem o que anda acontecendo com as crianças neste mundo contemporâneo:
Fonte das imagens (respectivamente): GSmart, Big Issue e Bhaz.
As crianças não querem ser mais crianças!!! eu lembro que ate meus 13 anos eu ainda brincava de carrinho com os amigos. Hoje em dia nessa idade as crianças já estão namorando ou até mesmo gravidas. Como o texto diz: a exposição midiática que essas crianças sofrem na dita Modernidade e muito forte e elas acabam tornando tudo muito banal, não vivem mais suas infâncias estão preocupadas em terem salto alto, iphone, maquiagem...enfim tudo o que uma criança normal não deveria fazer! Texto muito bom...
ResponderExcluirMuito bom, uma crítica crônica. Parabéns!
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