"O Lobo de Wall Street” concorre ao Oscar de hoje em cinco categorias: filme, diretor, ator, ator coadjuvante e roteiro adaptado. No caso, as figuras da disputa são Martin Scorsese, Leonardo Di Caprio, Jonah Hill e Terence Winter. Todos, sem dúvida, são merecedores de atenção do público cinéfilo, mas não vejo nenhum deles entre os favoritos pela Academia. Entre eles, Di Caprio talvez seja o mais distante da estatueta, mais uma vez.
Baseado na autobiografia de Jordan Belfort, o filme conta em ritmo acelerado a história de um dos mais notáveis corretores do mercado financeiro estadunidense nos anos 90. Segundo informações facilmente encontradas numa rápida busca em portais de cinema e revistas digitais, Terence Winter e Scorsese elaboraram sua versão cinematográfica de maneira bastante fidedigna em relação à visão de Belfort retratada no livro. A narrativa, portanto, não representa fatos simplesmente, mas interpretações pessoais daqueles acontecimentos. A história que chega até nós parte de referenciais limitados se quisermos conhecer o que realmente se passou na vida do protagonista durante os caminhos percorridos entre a ascensão e a derrocada financeira, pois se limita à memória de Belfort e aos juízos de valor que ele próprio aplicou sobre seu passado. Nesse sentido, o que vimos na telona não corresponde somente a fatos que embasaram a trama, mas a memórias cortadas, atualizadas e construídas como qualquer outra.
Reconhecer a memória como um ponto de vista forjado pela consciência do presente em relação ao passado torna o filme ainda mais interessante. Scorsese percebe essa sutileza e brinca com a memória do narrador em alguns pontos. O que de fato aconteceu? Isso só podemos conhecer a partir da narração em off de Di Caprio e de alguns flashes que revelam algo momentaneamente esquecido pelo personagem narrador. Mas até que ponto essas lembranças são verossímeis? As lacunas abertas pelo esquecimento dizem muito sobre a seletividade de nossa memória. Mas isso é papo de quem estuda história. A relação presente-passado é visível nos momentos em que Belfort se dirige à câmera como alguém que vende sua própria história e faz publicidade acerca de. No entanto, a discussão sobre memória não é largamente trabalhada ao longo do filme. O foco é outro.
Publicidade. Leão. Selva. Competição. “Estabilidade, integridade e orgulho”. Anões. Apostas. Sexo. Mulheres. Carros. Mansões. Iates. Drogas. Masturbação. Dinheiro. Sucesso. Silicone. Ejaculação precoce. Testosterona. Assédio moral. Corrupção. Bancos suíços. “Terra da oportunidade”. Estados Unidos da América. Bolsa de valores. Capitalismo.
São três horas de filme representadas numa velocidade que faz alusão à correria e ao estresse no cotidiano dos corretores, mas também aos inúmeros vícios dos membros da Stratton Oakmont, a empresa voltada para vendas de ações à frente da qual estão Jordan Belfort e Donnie Azoff (interpretado por Jonah Hill, que concorre relativamente bem ao prêmio de melhor ator coadjuvante). Corretores de bolsas como a de Wall Street e seu mundo financeiro são parasitas da parcela da sociedade que produz algo de fato. São especialistas em vendas de não-produtos. Como os bancos, fazem dinheiro fazendo o dinheiro rodar – a forma mais nefasta assumida pelo capitalismo.
Embora o filme discorra acerca de vários temas sociais, culturais, econômicos, políticos e psicológicos, a meu ver o cerne da trama pode ser analisado a partir das ideias do vício e da especulação financeira em si e como metáforas que alcançam mais diretamente os desdobramentos dessas questões de interesse público no âmbito das relações pessoais. As crises financeiras que assolam o capitalismo por meio do rápido esvaziamento das bolhas que são formadas em torno de um capital não produtivo e que estouram à medida que não conseguem mais alimentar esse ciclo provocam rápidos desmoronamentos de grandes fortunas por estarem ancoradas a verdadeiros fantasmas financeiros, sem sustentação material ou produtiva. Nesses casos, podemos dizer que a riqueza era ilusória, pois sem trabalho investido toda riqueza é instável e movediça. Desestabiliza-se o alicerce e toda a alegoria cai ao chão.
O mesmo acontece no nível das relações pessoais. Juntamente ao crescimento da bolha financeira, sem base real de produção, o alargamento das relações de amizade e parentesco infla em ritmo semelhante. Igualmente construídas sem bases sólidas, as relações desenvolvidas durante esse processo artificial de enriquecimento, também estabelecidas sobre castelos de areia, desvanecem da mesma forma que os rios de dinheiro em tempos de crise. É nesse momento que o protagonista perde tudo o que supostamente havia conquistado, desde os lucros exorbitantes até o amor de sua esposa e lealdade de um de seus sócios, os quais nos tempos de bonança formavam um time indissolúvel e extremamente coeso.
As derrotas e insatisfações em suas vidas pessoais são o motivo que levam as personagens a essa busca desenfreada pelo sucesso e pelo dinheiro, por drogas e sexo. Isso é muito bem explorado no trabalho de Scorsese, que escolhe, ao seguir a perspectiva do livro, desenvolver a vida e as decisões tomadas especificamente por aquelas pessoas. Sua história parece, então, limitar-se ao mundo de Jordan Belfort, mas existem alguns quadros, como, entre outros, o que fecha o filme (quando o foco deixa de ser Belfort e passa aos espectadores de sua palestra), em que Scorsese sutilmente sugere que essa é apenas uma possibilidade, uma dentre várias outras histórias semelhantes no mundo de Wall Street.
A questão, portanto, não diz respeito a casos individuais, excepcionais. Pelo contrário, a trama parte de um caso específico para tentar demonstrar os vícios mais estruturais da sociedade capitalista estadunidense. Logo, os vícios não são apenas pessoais, mas sociais, principalmente. São os vícios duma sociedade que alimenta o ciclo de artificialidades sobre as quais foi construída.
No filme, vemos que existe um cuidado com a observação e a análise para substanciar uma opinião que nunca se oculta, mas tampouco sufoca o texto. Assim é “O Lobo de Wall Street”, que deixa brechas para interpretações mais centradas sobre o caso individual, mas que parece advogar uma análise mais sistêmica.
Alguns podem assistir à obra de Scorsese, Winter e Di Caprio e reputar exclusivamente a indivíduos corruptos e imorais como Jordan Belfort e Donnie Azoff as responsabilidades pela crise financeira dos últimos anos, por exemplo. Por outro lado, é também muito fácil enxergar, para além disso, as contradições estruturais do capitalismo presentes na trama. A meu ver, Belfort e Azoff são indivíduos dotados de autonomia, reflexão e consciência, mas também representantes materializados da cultura capitalista, que tanto favorece os vícios, a depressão, o individualismo, a fuga, a ambição e a competição.
São cinco categorias. Algumas chances, afinal. Mas acredito que nem tantas devido à agressividade de algumas de suas cenas quando pensamos no conservadorismo da Academia e no falso moralismo da cultura hegemônica dos Estados Unidos. Outros concorrentes, como “Doze anos de escravidão” e “Trapaça”, são bem mais comentados. Scorsese já levou o dele como melhor diretor em 2007, e não deve ser interesse dos membros da Academia premiar novamente um nome relativamente alternativo dentro dos moldes da premiação. Em relação ao prêmio de melhor roteiro adaptado, tem o azar de disputar em mais uma categoria com a adaptação do livro de Solomon Northup, mas está entre os mais prestigiados. Jonah Hill está muito bem como ator coadjuvante, mas talvez não tanto quanto Jared Leto e Michael Fassbender. No caso de Leonardo Di Caprio, sinto que não será dessa vez devido às características de “O Lobo de Wall Street”, que, embora gire completamente em torno do protagonista, não exige muita versatilidade dos atores. O filme é rico pela forma como ilustra aquele mundo, mas seus personagens são relativamente simples, quase lineares.
Fonte das imagens: The Wolf of Wall Street
cada tem que ter seu valor tenho 8 anos
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