Rock vs. funk e a superioridade musical

Uma das coisas que mais me assusta – e enoja – na internet é a forma como as pessoas expõem seus preconceitos – dentre outras coisas obscuras – sem nenhuma culpa, coisa que eu não acredito ser resultado de uma ação ingênua, mas sim da sensação de segurança que o mundo virtual oferece para expor à vontade seus pensamentos, seja lá quais sejam.


No Facebook, rede social que, atualmente, é a mais acessada no Brasil, é possível ver a transparência das pessoas em relação a seus preconceitos, seja de forma sutil ou não. Um exemplo disso são as imagens virais que comparam músicos do rock com os de funk, mostrando uma suposta superioridade musical. São imagens cujas comparações caracterizam-se pela ausência de qualquer argumento decente. Ainda assim, o pior de tudo é ver o número de pessoas que as compartilham e dão continuidade a essa disputa sem sentido.

As imagens, em especial aquelas que favorecem o rock, são extremamente preconceituosas principalmente em termos racial, sexual e sócio-econômico. Os argumentos se limitam a comparações de mulheres brancas, magras e tidas pela sociedade como "bonitas" com mulheres de pele parda/negra, geralmente acima do peso e que, diga-se de passagem, sofrem muito mais preconceito pela cor da pele que têm do que por apresentarem uma tatuagem qualquer, como suas "adversárias". É engraçado como ninguém usa a imagem de Beth Ditto, Cássia Eller ou Jimi Hendrix para representar o tão superior rock 'n' roll. Mais engraçado ainda é como as pessoas simplesmente esquecem todos os negros que deram origem ao rock – que não surgiu com Elvis Presley, como muitos pensam, e sim com pessoas como Chuck Berry e Little Richard.
Valesca Popozuda
Na época em que o rock surgiu, nos EUA, e uma porcentagem das pessoas brancas começaram a apreciá-lo e até mesmo a cantá-lo (e aí é que o Elvis entra), o rock era tido como música que rebaixava os brancos ao nível dos negros. Qual outro cantor branco rebolava como Elvis antes dele mesmo? Ninguém. Porque só os negros faziam isso. E mesmo quando os brancos tiveram que ceder ao sucesso do Rei, muitas emissoras de televisão o filmavam apenas da cintura para cima, pois aqueles movimentos executados por seus quadris eram uma obscenidade aos valores da família americana, racista e conservadora. 

Em outras palavras, o rock é algo que contribuiu contra o preconceito, e é isso que, acredito eu, todos deveriam se orgulhar sobre esse estilo musical. Ele é um dos motivos pelos qual temos mais igualdade racial e liberdade sexual (principalmente nós, mulheres).

Outra comparação é o nível de escolaridade dos músicos, em que Bruce Dickinson, que é PhD, ganharia vantagem. Mas afinal, quantos rockstars abandonaram a escola? E a crítica expressa em Another Brick in The Wall, do Pink Floyd? Kurt Cobain, vocalista do Nirvana, abandonou a escola antes de completar o Ensino Médio e depois teve que trabalhar como faxineiro desta. E isso não o impediu de compor o maior hino do grunge, Smells Like Teen Spirit.

O funk é cantado por pessoas da favela, sim. Eles nasceram lá, são pobres e cantam sobre a realidade em que vivem. Isso não é um manifesto social? Eles se manifestam pela favela, assim como Bob Dylan (que, apesar de ser um cantor folk, é uma das maiores influências do rock) se manifestou por tudo aquilo que estava vivendo nos anos 1960.
Joan Baez e Bob Dylan na Marcha de Washington pela liberdade, trabalho, justiça social e fim da segregação racial.
Em meio a tantas críticas em relação às cantoras de funk por simplesmente cantarem sobre sexo como os homens e exibirem seus corpos, parece que todos ignoram Cherrie Currie, vocalista das The Runaways, cantando de lingerie no palco com as pernas abertas; da Courtney Love, vocalista do Hole, exibindo os seios. Não faz sentido defender um gênero musical com tanto machismo e pseudo-puritanismo. Rock 'n' roll é sexo. É vulgaridade. É antipuritano. É liberdade. E ainda bem!

Portanto, nenhum estilo musical é superior ao outro e gostar de rock não faz ninguém superior a alguém que gosta de funk ou vice-versa, e o mesmo é válido para cor de pele, nível de escolaridade e condição social e econômica.

Rita Lee
Fonte das imagens (respectivamente): BRgag, Ativismo de Sofá, Wikipedia e Cifra Club News.