O popular e o erudito

Em 1970, foi lançado, no Recife, com um concerto musical e uma exposição de artes plásticas, o Movimento Armorial, cujo objetivo era "realizar uma arte erudita brasileira a partir das raízes populares da nossa cultura". O idealizador desse manifesto foi ninguém menos que Ariano Suassuna, autor do famoso Auto da Compadecida e membro da Academia Brasileira de Letras. 

Reza a lenda que um dia um crítico teatral abordou Ariano e perguntou de onde ele tinha tirado as ideias para alguns dos episódios do Auto da Compadecida. O crítico inquiriu algo como: "Como foi que o senhor teve aquela ideia da bexiga de sangue?", Ariano disse: "Eu encontrei em um folheto de cordel". Depois perguntou: "E a história da música que ressuscita a pessoa?". Ariano: "Tirei de outro folheto". O outro: "E o cachorro que morre e deixa dinheiro para o enterro?". Ariano: "Aquilo ali é um folheto também." Descontente com as respostas, o crítico disse: "Mas isso é o fim. Então, o que foi que o senhor escreveu?". E Ariano, por fim: "Oxente! Escrevi foi a peça." Resumindo: o livro foi escrito a partir de uma reconstrução da literatura de cordel, típica da cultura popular nordestina.

O Auto da Compadecida é considerado um dos marcos do teatro moderno brasileiro, a peça já foi traduzida para dezenas de idiomas e conta com várias montagens tanto no Brasil como no exterior. Além disso, tem três adaptações cinematográficas, a última das quais, protagonizada por Selton Mello e Matheus Nachtergaele, de estrondoso sucesso, tornou-se o filme nacional favorito de dez entre dez brasileiros. 

Assim, a literatura de cordel nordestina quase esquecida tornou-se uma obra-prima da literatura brasileira. E é exatamente esse o espírito do Movimento que Ariano tenta disseminar: criar uma arte erudita a partir do resgate da tradição popular.

Embora eu tenha escolhido destacar a peça de Ariano, por ser mais conhecida do público em geral, o Movimento não se restringiu à literatura, mas também teve seus expoentes na dança (com o xote), nas artes plásticas (com as xilogravuras) e na música (principalmente dos violeiros). 

Quem sabe Ariano, além dos episódios do seu Auto, não tirou a ideia de resgatar a cultura popular de algum folheto, mas, como diria Chicó, não sei, só sei que foi assim. O que realmente importa é que o Movimento Armorial, sendo uma cópia ou original, é um manifesto fantástico, uma verdadeira redescoberta das nossas origens e tradições.

Fonte da imagens (respectivamente): Celophane Cultural e Biblioteca Municipal.

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