Pensei bastante antes de falar sobre discussões historiográficas num blog mais "leve" como o Fragmentos. Sabendo que a leitura acadêmica fora das universidades ainda é muito restrita, imaginei que uma resenha desse tipo não agradasse aos internautas, leitores mais acelerados e multifuncionais. Por outro lado, gosto sempre de lembrar que o texto mais visualizado dessa coluna trata sobre o mito da democracia racial no Brasil, desconstruído justamente a partir de referências acadêmicas. Outrossim, se não fosse para ultrapassar os muros da universidade, como normalmente acontece, e socializar os conhecimentos produzidos ali, não faria sentido para mim estudar numa instituição pública. Na verdade, não faria sentido estudar.
Já escrevemos aqui sobre o racismo e o pensamento racialista no Brasil. Escrevemos também sobre um debate acerca das cotas raciais em que Demétrio Magnoli vê suas argumentações reacionárias e fragmentadas mostrarem-se quebradiças ante a minúcia e a perspicácia de Lilia Moritz Schwarcz. Por isso, considerei oportuno trazer considerações sobre "O Espetáculo das Raças", obra que projetou o nome da autora entre as historiadoras e antropólogas de maior relevância intelectual do país.
Publicado pela primeira vez em 1993, pela Companhia das Letras, o livro nos incita a aprofundar nossas reflexões em torno do racismo brasileiro, contextualizando o fortalecimento dessas ideias em fins do século XIX e início do XX. No estudo, seu objeto de análise é a questão racial no Brasil entre 1870 e 1930. Seus personagens são os cientistas, políticos e instituições diretamente envolvidos com o desenvolvimento desse modo de ver a humanidade.
No entanto, Lilia Schwarcz, autora de vários trabalhos sobre o passado imperial brasileiro, dissolve diferentes fronteiras temáticas no campo da historiografia, ultrapassando o que seria uma lacunosa análise das ideias daquele período, se dissociada da cultura e da sociedade enquanto redes inextrincáveis. Dessa forma, podemos afirmar que um dos trunfos de seu trabalho foi ter evitado uma concepção simplista do movimento e transformação das ideias, recusando-se a percebê-las como elementos independentes em relação a outras dimensões da realidade. Pelo contrário, a antropóloga procura entender o contexto sociocultural e os interesses políticos que permitem o surgimento e a ascensão dessas ideias. A riqueza do livro está exatamente em vasculhar os porões ideológicos que sustentam o pensamento social.
Nessa perspectiva, consegue elucidar, entre suas contribuições mais centrais, a estreita relação existente entre educação e ideologia, demonstrando a maneira pela qual instituições de pesquisa e/ou ensino daqueles tempos, como os institutos históricos e geográficos, os museus etnográficos e as faculdades de medicina e direito, disseminavam teorias que hierarquizavam as raças humanas: os brancos encarados como superiores, ponta de lança do progresso civilizatório; os demais, vistos como incapazes e degenerados física e mentalmente.
Assim, "O Espetáculo das Raças" nos ajudar a perceber que não mais podemos ser tão ingênuos a ponto de considerar a existência de um projeto cultural, artístico ou educacional alheio a convicções políticas. Portanto, não faz sentido reivindicarmos exclusivamente maiores investimentos econômicos na educação. Precisamos também problematizar nossas ideologias, questionar qual modelo pretendemos construir.
Nesse livro, que tão bem alcança a discussão sobre o branqueamento social proposto pelos "homens de sciencia" como estratégia de combate à degeneração racial provocada pela mestiçagem brasileira, Schwarcz realiza um dos trabalhos mais lidos entre as produções historiográficas brasileiras devido à complexidade de suas argumentações. Ao falar das influências europeias para a formação desse tipo de mentalidade, não se limita a reproduzir o fácil discurso de que o Brasil, assim como a América Latina, tende apenas a imitar os modelos e teorias que vêm de fora. Com sua escrita agradável, leve e democrática – considerando que o texto é produto de sua tese de doutoramento – a autora procura entender o emaranhado de referências históricas e culturais que ajudaram a formar um pensamento racialista próprio dos intelectuais brasileiros. Sendo assim, sua preocupação foi pensar uma história “na qual tenham lugar tanto a dinâmica de reconstrução dos conceitos e modelos como o contexto em que essas teorias se inserem, que lhes confere ainda novos significados”.
Posto que a noção de educação daquele período era profundamente influenciada pelas instituições e ideias racialistas investigadas por Lilia Moritz Schwarcz, podemos nos considerar isentos de outras amarras ideológicas próprias de nosso contexto? Se não, possuímos mecanismos intelectuais que nos permitam visualizar essas amarras? É possível alcançá-las solitariamente, sem interlocutores diretos e indiretos? Diante de tantas experiências sociais que alicerçam nossas escolhas e ações sem muitas vezes nos darmos conta, é responsável enchermo-nos de certezas frente à realidade? Qual deve ser nossa postura no enfrentamento do racismo?
Fonte das imagens (respectivamente): Paraty e Companhia das Letras.
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Posto que a noção de educação daquele período era profundamente influenciada pelas instituições e ideias racialistas investigadas por Lilia Moritz Schwarcz, podemos nos considerar isentos de outras amarras ideológicas próprias de nosso contexto? Se não, possuímos mecanismos intelectuais que nos permitam visualizar essas amarras? É possível alcançá-las solitariamente, sem interlocutores diretos e indiretos? Diante de tantas experiências sociais que alicerçam nossas escolhas e ações sem muitas vezes nos darmos conta, é responsável enchermo-nos de certezas frente à realidade? Qual deve ser nossa postura no enfrentamento do racismo?
Fonte das imagens (respectivamente): Paraty e Companhia das Letras.
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