Os igarapés e uma literatura do Pará


Não sei qual amigo uma vez disse que paraense se reconhece no igarapé.

Que rede, que nada. Nem círio. Tacacá, muito menos.

Mais do que o amazonense, que talvez seja mais ligado no rio grande e caudaloso, ou que qualquer outro amazônida, o paraense de modo geral sente-se em casa quando banhando num igarapé. Era a tese desse amigo que nunca conheceu nenhum outro estado da Amazônia a não ser o mais nordestino deles, o Maranhão.

Meu amigo, sensato como deve ser, não quis dizer que não é paraense quem não curte igarapé, mas que mesmo estes o têm como importante referência. (E ele fala assim mesmo, cheio de “nãos” no meio das frases. Afirmo isso, embora não lembre exatamente de quem se trata, porque existem determinadas peculiaridades humanas que por mais que tentemos jamais conseguimos esquecer.) Toninho – chamemo-lo assim para evitarmos os pronomes desnecessários – nunca soube a dimensão que o igarapé figura junto ao imaginário e aos sentidos dos amapaenses ou roraimenses nem pôde constatar empiricamente a veracidade de sua afirmação nos diferentes e distantes cantos do estado do Pará, mas o dizia com a maior das convicções: seja cá pras bandas de Santa Isabel ou lá para o lado de Santarém, o igarapé está na cabeça do paraense como na de nenhum outro.

Toninho, que a partir de agora passa a ser uma personagem, gosta muito de ler, adora a literatura regional. Curte Milton Hatoum e Salomão Larêdo, entre os mais recentes. 

Tem paixão, no entanto, pelas raízes dessa literatura. 

Vira e mexe, considera o padre Antônio Vieira como sendo um pouquinho nosso, uma vez que por tantos anos por aqui viveu, dedicando-se política e religiosamente ao Estado do Maranhão e Grão-Pará nos idos do século XVII. Mas a principal referência de Toninho, aquela que vem da planta de seus pés, que sustenta sua visão de mundo, são as obras de Inglês de Sousa, em que os diferentes braços e caminhos do rio são pintados como a definitiva força cultural e biológica do Pará, mais especificamente do Baixo Amazonas (aquela região em torno de Santarém).

Nascido Herculano Marcos Inglês de Sousa em 1853, suas histórias têm no trecho fluvial entre Óbidos e Santarém a maior parte de seus cenários e personagens, mas dificilmente o Rio Amazonas, em torno do qual depende diretamente a vida daquelas pessoas, aparece como proscênio do enredo. Embora o Amazonas esteja sempre presente, devido à sua condição de principal via de transporte daquela região, essas histórias geralmente acontecem em meio a rios menores e igarapés, onde se encontram pequenos sítios de pescadores e cacaulistas – a vida do caboclo no que há de mais íntimo entre os recônditos fluviais. Em Inglês de Sousa, o Rio Amazonas é uma passagem – obrigatória, mas, ainda assim, passagem.

Nos colégios de ensino básico, aquele lugar onde, seja você paraense, normalmente estudamos os “Contos Amazônicos” (publicado integralmente pela EDUFPA e parte pela PAKA-TATU, duas das principais editoras do estado), nos é apresentado o mundo selvagem, político e melancólico criado por Inglês, que escreveu sobre a região sem mais conviver com sua gente, já distante de sua terra. Seus escritos foram desenvolvidos com base em suas memórias de infância e nas experiências narradas por seu pai quando já moravam no estado de São Paulo.

Lembro-me de ter lido, durante os anos escolares, “Acauã”, “Voluntário” e “A Quadrilha de Jacó Patacho”, analisados como representantes da estética naturalista, movimento literário que normalmente é associado a visões deterministas próprias das últimas décadas do século XIX na Europa e no Brasil. Para os estudiosos do Naturalismo, os seres humanos dessa literatura seriam o resultado inexorável do contato entre o meio e a hereditariedade. Mas é pouco, muito pouco, ler Inglês de Sousa pensando apenas a partir desses referenciais escolares. Da forma como muitas vezes somos orientados a estudar literatura no ensino básico, ficamos excessivamente presos às características gerais dos grandes movimentos, perdendo de vista as sutilezas estéticas, os cuidados na forma da escrita e as referências psicológicas e culturais ativadas no ato de escrever, que são manuseadas de maneiras tão singulares e próprias de cada autor. Ainda que o contexto histórico seja indispensável para uma melhor compreensão de qualquer obra literária (pois nos permite observar os alicerces culturais e os limites ideológicos do texto e do respectivo autor em relação a seu tempo), não podemos aniquilar a subjetividade dos indivíduos enquanto atores sociais dotados de autonomia criativa.

“O Missionário”, publicado em 1891, é considerado sua obra-prima, sendo para alguns, devido à riqueza de seu descritivismo, o romance mais maduro do Naturalismo brasileiro. O restante de sua nem tão extensa obra, no entanto, acabou sendo relegada ao esquecimento. Para o resto do Brasil, mesmo para especialistas da área, Herculano Marcos Inglês de Sousa foi daqueles autores de uma obra só. Tamanho contrassenso é completamente injustificável, uma vez que, sob o pseudônimo “Luiz Dolzani”, o autor publicou um ciclo muito rico em termos estéticos e sociológicos. Chama-se “Cenas da vida do Amazonas”.

O ciclo, que Toninho prefere não chamar de “trilogia”, compreende três livros relativamente independentes entre si, todos publicados nos anos 1870, inaugurando o Naturalismo no Brasil, essa “radicalização” do Realismo: “O cacaulista”, “História de um pescador” (ambos de 1876) e “O coronel sangrado” (1877). No afã de promover a literatura regional, sempre se reitera que a obra naturalista de Inglês é anterior à publicação de “O mulato”, lançada ao público pelo maranhense Aluísio Azevedo em 1881, mas não vejo maiores relevâncias nessa questão. De qualquer forma, sendo este ou aquele o pioneiro, o Naturalismo não surgiu no Centro-Sul como normalmente acontece entre os movimentos literários legitimados nacionalmente, mas na Amazônia. Aliás, foi a partir do Naturalismo que a literatura paraense começou a ganhar corpo. Esse movimento, pois, representa enormes conquistas para a região, que hoje vem retomando sua leitura. Toninho já dizia: "Naturalismo é raiz no Pará".

Cenas da vida do Amazonas

De vez em quando parava o rapaz, e levava a contemplar as casinhas da cidade que tinha diante de si, absorto em melancólicos pensamentos. O seu olhar, em que brilhava por vezes um fogo estranho, parecia querer abranger a cidade toda, e corria constantemente da boca do igarapé ao depósito da lenha, como se uma febril impaciência não lhe permitisse observar detidamente os diversos pontos de vista.


Esse é um trecho de "O coronel sangrado", livro que fecha a série. O rapaz mencionado é o protagonista do primeiro livro, "O cacaulista". Os "pensamentos melancólicos" e a "boca do igarapé" são alusões onipresentes na literatura de Inglês de Sousa. São várias as referências sobrepostas e reelaboradas em sua escrita, mas a que talvez seja menos citada em análises literárias sobre o autor é essa preocupação em capturar o olhar do caboclo amazônico. Melancólico ou ameaçador, real ou fantástico, o olhar aparece com muita força em suas histórias. Como não lembrar os calafrios provocados em "Acauã" pelo olhar demoníaco de Vitória, "olhar frio que parecia querer pregá-la [Aninha, sua irmã] no chão"? O grito agourento do acauã é outra figura recorrente nesses enredos lúgubres de Inglês.

No meu caso, sou mais fascinado pelo que o autor tem para dizer e como o faz. Por uma natural dificuldade de concentração, não sou muito atento a tantos detalhes e reminiscências, mas Toninho sempre pede para que eu volte e releia algumas passagens. Graças a ele é que pude fotografar um dos trechos mais representativos do imaginário ativado por Inglês de Sousa sobre a personalidade dos povos ribeirinhos da Amazônia oitocentista: "o caboclo não ri, sorri apenas", dizia em "Voluntário". Nas "Cenas da vida do Amazonas", o caboclo permanece "absorto em melancólicos pensamentos", lacônico e contemplativo. Muito embora seja trabalhado de formas diferentes em cada texto, esse é um dos principais elementos que dá coerência e linearidade à sua interpretação da vida social no Rio Amazonas, sempre representada crítica e melancolicamente em meio aos desmandos políticos e ao autoritarismo daqueles que são ligados ao poder político-militar e à capital.

Em "O cacaulista", o caboclo é oprimido pela inexperiência e pela ausência de contatos diplomáticos com a cidade. Na "História de um pescador", pela ignorância e pela falta de instrução formal. Em "O coronel sangrado", a opressão é percebida mais a profundo, no sistema eleitoral e nas amarras das instituições políticas.

Os três livros podem ser encontrados na livraria da Editora da UFPA.

As fotografias são de Araquém Alcântara. Representam, respectivamente, cenas de Tefé (AM), Óbidos e Santarém (PA).

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