Meia verdade, mentira completa

Charles Foster Kane, dono do maior império jornalístico americano, na primeira metade do século vinte, conseguiu ser vítima da pobreza e da riqueza e ainda sair da vida para entrar na história como um vilão. Tudo isso em uma só vida. Trata-se aqui de uma obra fictícia, o filme Citizen Kane (“Cidadão Kane”, no Brasil), dirigido, escrito e interpretado por Orson Welles, em 1941.

A obra é conhecida principalmente por suas contribuições técnicas, que produziram uma profunda inflexão sobre o curso da linguagem cinematográfica. Muitos a consideram a obra mais importante desde a invenção do cinematógrafo pelos irmãos Lumière. Por outro lado, há um vasto e profícuo conteúdo social e político a ser discutido.

A narrativa do filme é iniciada com a notícia de óbito de Charles Kane. Em seguida, sua vida passa por uma retrospecção elaborada a partir de uma extensa e rigorosa pesquisa empreendida por um jornalista.

Primeiramente, Kane foi vendido por sua mãe, uma mulher pobre que agia com a melhor das intenções, acreditando que, entregando seu filho a um milionário, a situação de ambos melhoraria consideravelmente – ela ainda tenta culpar a agressividade do marido como a real justificativa de sua atitude. Lembremos que, assim como a senhora Kane, Lênin, ao liderar a Revolução Bolchevique, que, segundo suas ideias, seria o primeiro passo para a supressão do capitalismo e, por consequência, das desigualdades sociais, também almejava uma realidade melhor, menos injusta e penosa; mas ninguém prevê o dia depois de amanhã nem controla aqueles que o sucedem em seu projeto.

Kane, então, foi afastado de sua família ainda criança. Com isso, distanciou-se da pobreza, mas distanciou-se, simultaneamente, do afeto familiar e do trabalho. E foi assim que se encontrou desafortunado em meio a uma das maiores fortunas do país. Da noite para o dia, o jovem Kane abandonou a infância e abraçou o egocentrismo. Ora, pois, ele tinha tudo, mesmo aquilo que não queria ou não precisava. E não havia feito nada para conquistar tais regalias. Não produziu nenhuma riqueza. Apenas a consumiu desenfreadamente. Sendo assim, para Kane, o mundo realmente parecia girar ao seu redor.

A situação muda, de certa forma, quando ele passa a considerar que seria “divertido” ser editor e proprietário de um jornal. Agora, ao assumir o pequeno, ou médio, “Inquirer”, ele passaria a contribuir com algo, exercendo uma profissão, um trabalho.

Charles Kane compreendia, desde o início, o poder da mídia e enxergava os meios para conquistá-lo e os caminhos que deveria percorrer para alcançar a glória particular e profissional. Sua estratégia básica era transmitir a informação como sendo a verdade absoluta, fazendo com que a população – sobrecarregada de altas jornadas de trabalho, com salário aquém do razoável e que, por isso, não dispunha de tempo para muitos questionamentos ou reflexões – acreditasse na imparcialidade da imprensa (“se está escrito é verdade”, como na Bíblia) e na sacralidade do próprio Kane, o dono da verdade, um “autêntico cidadão” que prestava largos serviços à sociedade: “The people think what I want they think!”.


Impossível não fazer referência a Ace in The Hole (“A Montanha dos Sete Abutres”), dirigido por Billy Wilder. Um filme que, pessoalmente, acho muito melhor, mas que apresenta importantes diferenças em relação à obra de Welles. Wilder tem como foco o jornalista “vendido”; Welles, o magnata. Impossível também não relacionar ao nosso cotidiano, mesmo setenta anos depois da morte de Kane, ano de lançamento do filme.

Quando assisti a esses filmes, logo me lembrei da revista Época, da TV Globo e do jornal homônimo – três propriedades de uma mesma organização, a fundada por Roberto Marinho. Não à toa, existe um documentário chamado “Muito Além do Cidadão Kane”, que discorre acerca da “história secreta da Globo”. Além, é claro, de partidos políticos que são “beneficiados” pela “grande imprensa”, a qual é controlada, econômica e ideologicamente, por instituições ainda mais poderosas, as grandes empresas anunciantes.

Regionalmente, ainda temos a polifônica Organizações Rômulo Maiorana (ORM) – sempre achei curioso serem as mesmas iniciais do “cidadão” Roberto Marinho –, com os seus jornais impressos “O Liberal” e “Amazônia”, além da emissora de televisão e de rádio. A ORM, assim como muitas outras presentes em vários estados brasileiros, está vigorosamente presente em três setores diferentes de meios de comunicação, o que chamamos de “propriedade cruzada”. Um verdadeiro atraso para a liberdade de expressão, visto que, nesses casos, uma só voz torna-se altissonante, repercute e produz eco, culminando em uma reverberação ininteligível e vazia.

Em contrapartida, há 24 anos, ainda existe uma forte trincheira da informação amazônica: o pequeno, mas imponente, Jornal Pessoal, escrito e editado por Lúcio Flávio Pinto, considerado o jornalista mais combativo do país, que já foi processado mais de trinta vezes perante o poder judiciário paraense por desmascarar grileiros, corruptos e fraudes governamentais. Tenho minhas críticas à atuação de Lúcio Flávio, mas isso fica para outro texto...

Ainda assim, parece-me claro que não podemos dizer que existe jornalismo imparcial. Minha presente formação em ciências humanas me ensina muito a respeito da subjetividade do conhecimento e da apresentação da “verdade” como uma “realidade observada” e, portanto, enquadrada sob a limitação de uma perspectiva possível, mas nunca total. Ou ainda, como diz a seguinte frase frequentemente atribuída a Leonardo Boff: “todo ponto de vista é a vista de um ponto”. Afinal, somos seres políticos, o que significa dizer que enxergamos o mundo a partir de nossa condição material e de nossa formação cultural.

Por isso, devemos sempre nos preocupar em estudar o jornalista para depois estudarmos o jornal. Nesse sentido, o olhar minucioso e crítico sobre a matéria jornalística deve sempre estar atento, pois mesmo jornais de qualidade – aqueles que têm compromisso com a busca pela informação completa, sem omissões deliberadas; aqueles que propugnam a responsabilidade social, exercendo, assim, a verdadeira “cidadania jornalística”, ao contrário da cidadania aos moldes de Charles Kane – podem cometer equívocos, propositalmente ou não.

Mas, enfim, o que é cidadania? De fato, não sou, de longe, a pessoa mais indicada para tratar da questão, mas certamente desinformar a população, apresentando apenas “meia verdade” (mentira completa) não é um bom exemplo.

Fonte das imagens (respectivamente): Blog 100 Melhores Filmes e Jornalismo B.

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