Vendados e vendidos

Um mundo em que as pessoas encerram os limites de seus conhecimentos, consumindo todo o seu tempo em torno de pouca coisa. Um mundo em que o habitante ideal procura conhecer cada vez mais sobre cada vez menos, saber tudo sobre nada e voltar seu conhecimento para si mesmo, ignorando sua função social. Um mundo voltado quase que exclusivamente para o mercado e que abriga habitantes que se submetem a essa lógica, definindo o comodismo e a apatia individualista de suas vidas. Afinal, para esses estrangeiros do mundo real, nenhum conhecimento vale a pena caso não encurte a distância entre nós e o lucro. Essa é a universidade, mais uma instituição descaracterizada e submetida a objetivos mercadológicos.

Muitos de nós passamos toda a infância e a adolescência ouvindo de nossos pais que temos que estudar para "garantir nosso futuro" porque "eu não vou viver para sempre para te sustentar". Sem dúvida, alguns ouvem até que muito foi investido em sua educação – desde crianças, nós, classe média, estudamos em escolas particulares. "Por isso, esperamos retorno financeiro. Queremos ser indenizados pelo dinheiro que investimos em ti". (Dificilmente chegam a ser tão claros, mas às vezes parece que é exatamente isso o que querem dizer.) Se não estamos motivados a estudar no Ensino Fundamental ou Médio, por exemplo, usam a escola pública como ameaça. Enfim, somos mais um investimento financeiro, somos ações aplicadas numa bolsa de valores.

Na escola, geralmente recebemos as mesmas instruções: precisamos estudar, estudar, estudar, para depois trabalharmos, trabalharmos, trabalharmos. Porque, assim, seremos ricos e, consequentemente, "realizados". Reduzindo toda a sua vida a isso, a classe média está apenas reproduzindo seu poder e sua submissão ideológica, fundamentados no pavor à proletarização e na busca incessante pelo aburguesamento de sua condição econômica e de sua "conduta social" (gostos "refinados", etiqueta, "boas" amizades etc): vida mesquinha e monótona.

Sendo um espaço onde a conservação é priorizada em detrimento da transformação, a escola assegura o caminho para o conservadorismo, inaugurado pelo ambiente familiar. No entanto, mesmo o conservadorismo apresenta seus "estágios". Quanto mais "avançamos" nesse modelo de percurso escolar, em que, segundo o sociólogo Pierre Bourdieu, a cultura das elites impõe-se violentamente sobre as populares, mais ignorantes, despolitizados e segregados nos tornamos.

Ao longo de nossa forma(ta)ção, raramente nos são ensinados valores como respeito, colaboração e solidariedade. Pelo contrário. Em busca do lucro e do sucesso profissional (pessoal), nossa sociedade valoriza a competição, a segregação e a exploração, naturalizando-as, como se fossem o "motor natural" de nosso mundo. Em outras palavras, além da ideia de que estas são características naturais e, portanto, imutáveis e inerentes à vida em sociedade, é propagandeada a ideia de que são indiscutivelmente benéficas para a humanidade, pois promovem nosso desenvolvimento ao estimular maior produtividade e superação técnica. O problema é que, dessa forma, o homem acaba sendo reduzido a um ser que existe apenas para usufruir e aperfeiçoar as novas tecnologias do mundo moderno, como se comprar e ostentar qualquer produto ou título que seja fosse mais importante para o desenvolvimento humano do que conhecer o diferente, viver as mudanças, criar, assistir a Wong Kar-Wai ou a Fellini e ler Bertrand Russel ou Haroldo Maranhão.

Nesse sentido, o último "nível" educacional, o "Superior", apresenta-se como o auge do conservadorismo. Espaço em que muitos "intelectuais" distanciam-se do mundo real, fomentando inúmeras disputas e dissensões teóricas pueris que antagonizam pensadores diferentes e ignoram a contribuição de outros. Em Ciências Sociais, por exemplo, alguns weberianos não assistem às aulas sobre Marx, e vice-versa. Em História, curso em que Marx é ainda mais desacreditado, há um cenário intelectual em que existe uma enorme barreira entre Fernando Novais e João Fragoso. Em Filosofia, o problema também é grave: parte significativa dos academicistas que não admitem ou não sabem conviver com as renovações do conhecimento refuta integralmente as contribuições de filósofos contemporâneos como Nieztsche e Deleuze.

Envolvidos pelo fascínio provocado pelo reconhecimento e pelo status adquirido com suas produções acadêmicas, as quais, embora sejam pouco lidas, não deixam de serem importantes, "intelectuais" reclusos nas universidades esquecem o valor de um conhecimento mais amplo e difundido e menos bitolado e recluso. Esquecem que o mundo não é composto por diversos retalhos eventualmente interligados, mas por uma série de campos sociais indissociáveis que compõem uma realidade muito mais complexa do que aquela defendida por seus mestres individualmente. Assim, em muitos casos, o conhecimento acadêmico acaba sendo mais ideologizado e reducionista do que o senso-comum.

Produtor e produto de nossas instituições educacionais, este é um mundo que segrega (inclusive aqueles que buscam o conhecimento), enfraquecendo sua contribuição "para o nosso belo quadro social", que só é efetiva quando desenvolvida em conjunto. Dessa forma, não é surpresa nenhuma constatar que muitos saem da universidade com uma formação fragmentada, ideologizada e ainda mais alienante, completamente distante de sua função social, manifestando comportamentos incrivelmente antiéticos e individualistas. Porque, para o mundo capitalista, o que interessa é o emprego, o sucesso pessoal, o carro. Discutir, mobilizar e politizar são verbos impronunciáveis.

Vendados (e vendidos) por um "rigor científico" deturpado, muitos desses "intelectuais" defendem que o conhecimento acadêmico é amoral e absoluto, buscando sempre a explicação mais próxima possível da verdade, mas, ao mesmo tempo, definem suas influências teóricas e se reduzem a um pequeno número delas, fechando os olhos para outras perspectivas, como se a "verdade" tivesse sido "revelada" para aquele punhado de "iluminados". Além disso, ainda ostentam sua própria genialidade porque são "pós" nisso e "pós" naquilo. Vendados (e vendidos), ignoram a extensão e a socialização de seu conhecimento para além da universidade. Parecem defender, inclusive, que a universidade é o único (ou melhor) espaço de construção do conhecimento. Mas não é o que vemos na realidade. A universidade, enfim, muitas vezes não passa de um "ouro de tolo".

Fonte da imagem: Contraversão.

3 comments:

  1. Nossa, texto muito bom, muito bem escrito. Retrato digno da nossa sociedade. Parabéns ao autor!

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  2. "Se não estamos motivados a estudar no ensino fundamental ou médio, por exemplo, usam a escola pública como ameaça". Cara, sempre ouvia isso. Não era incentivo, era mais medo mesmo.

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  3. Ficou beleza, e se eu pudesse falar mais concerteza não passaria disso. Porque o que é bom é simplesmente muito delicado e forte, e tudo que li é carregado de algo muito fundamental. Está uma beleza. H. B.

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