Ele era branco, tinha as costas arqueadas para frente, trazia na pele as marcas do tempo, as marcas que encontramos, invariavelmente, na fisionomia daqueles que já passaram dos 60. Mas ele, bem... ele já passara há muito dos 60, arrisco dizer que já chegara aos 75, mas parecia já ter ultrapassado os 80, pois o tempo, o trabalho árduo de sol a sol e a vida de proletário o castigaram bastante. Ele era somente mais um daqueles anciões que sentam frente a suas casas para observar o movimento da rua e, na cabeça, aquele filme feito de um amontoado interminável de lembranças.
Esse senhor - infelizmente não sei seu nome - passava diariamente pela rua de minha antiga casa, com um gaiola na mão, bem cedo. Ia passarinhar em algum lugar, alguma mata que ainda tivesse pássaros. Um transeunte de passos lentos e curtos, mas não, não moribundos, eram passos fortes e vivos. Outras vezes, eu o via sozinho, na frente de sua casa de tijolo cru - ele morava só -, capinando, atento a tudo. Ele pensava que se parasse de trabalhar, tudo parava, inclusive sua vida. Parar é morrer e morrer é coisa que ele, sem dúvida, não queria. Eu via em seus olhos o gosto pela vida.
Eu, em minha rotina, passava por ele e ele passava por mim, mas nunca nos falávamos, nunca. Até que um dia enquanto ia buscar o pão, o vi com sua gaiola e não resisti, fui puxar conversa. Falei para ele de minhas frustrações com pássaros, contei da vez em que fui enganado com uma fêmea de curió pensando que era um macho e passei meses esperando a "muda" - é quando eles trocam de cor e o canto vem. E ele me contou vantagem, dizendo que o seu pássaro de peito vermelho vivo era o melhor da região e que, embora lhe oferecessem muito dinheiro, não vendia o amigo por nada, era a sua companhia, e amigo não se vende. Perguntou o que tanto eu estudava na escola, eu disse que estudava porque queria ser médico um dia e ele me contou do emprego dos filhos e onde estavam morando.
O senhorzinho não me falou de doença alguma, de frustração alguma, de nada reclamou, falou apenas de alegrias, de seu maravilhoso curió e de algumas saudades. Foram apenas uns poucos minutos de conversa e eu logo me despedi dele, disse um simples tchau e um boa-tarde, mas ele me respondeu de uma forma que me marcou. Não, ele não me proferiu um belo discurso, nem palavras de força, disse apenas: "Você também, meu filho. Que Deus te abençoe". Mas as palavras não são tão simples assim, elas têm entonações, cores e formas. Essa frase tinha as formas de um agradecimento, foi dita de um jeito prolongado e meio que cantado até, tinha um tom de surpresa e de pedido. Senti como se ele me dissesse que nunca vira aquilo. Era como se me falasse que ninguém tão jovem fora capaz de se doar um pouco a ele, de gastar tempo com o desconhecido.
Nesse dia, quebrei a redoma que me separava do mundo, tirei de mim as viseiras que me faziam olhar apenas para frente. Hoje, sei que se doar um pouco para outrem é muito mais um receber, nunca uma perda de tempo. O invisível só existe para quem escolhe não ver. Meu dia e minhas palavras são para qualquer ser vivente, mas, sobretudo meus ouvidos, eu os dou para quem quiser.
Fonte da imagem: The World of Photographers.
Belo Texto!
ResponderExcluirNossa!Muito lindo! A maioria dos jovens nem lembra que é muito fácil fazer uma pessoa feliz apenas dando um pouquinho de atenção e carinho a alguém. Infelizmente o egoismo tomou conta de muitos. Parabéns pelo texto e por ser assim...humano.
ResponderExcluirParabéns pelo texto hudson lindo
ResponderExcluir