Educação para o respeito às diferenças

A educação e os problemas relacionados à sua plena implementação compõem um tema que fundamenta algumas das principais discussões acerca dos obstáculos que impedem um melhor desenvolvimento social e humano. Essas dificuldades são ainda mais intensas e perceptíveis no ensino básico, setor em que, embora vejamos projetos como o da obrigatoriedade do ensino de História e cultura da África e o do malsucedido "kit contra a homofobia", a preocupação governamental brasileira é, há décadas, quase que exclusivamente quantitativa: matricular e aprovar um grande número de estudantes.

Hoje, pensamos em ensino formal e "educações" voltadas especificamente para crianças e jovens, mas nem sempre houve essa preocupação. Philippe Ariès, em sua "História Social da Criança e da Família", clássico da chamada História das mentalidades, demonstra como a noção de infância enquanto estágio específico do desenvolvimento humano é recente. Segundo o historiador, antes do século XVIII, a criança e o jovem eram vistos como adultos em miniatura, não possuindo, então, nenhuma particularidade. Os jogos dos quais participavam, suas roupas e sua sociabilidade eram os mesmos dos adultos. Portanto, a ideia de uma educação específica, de um ensino formal voltado para a formação e o desenvolvimento de aptidões básicas para o aprimoramento motor e cognitivo da criança e do adolescente, não é uma preocupação muito antiga.

Decorrente dessa mudança de mentalidade, a escola, como a conhecemos atualmente, é uma invenção ainda jovem. A Pedagogia, por exemplo, surge como conhecimento cientificamente organizado apenas na segunda metade do século XIX. Não por acaso, os nomes mais famosos a respeito do estudo da educação e de seus procedimentos psicológicos são intelectuais novecentistas (século XX): Piaget, Vigostsky, Paulo Freire. Sendo assim, alguns dos problemas com que nos deparamos no ensino básico só são entendidos como problemas há menos de duzentos anos. Já a intolerância e a discriminação, tão presentes no mundo escolar, ainda nem eram percebidas como problemas. Pelo contrário, havia estudos pseudocientíficos que justificavam a superioridade social dos brancos em relação aos negros e demais etnias não-europeias pelo seu suposto componente racial, naturalizando, por meio de observações das diversidades fenotípicas da (única) espécie humana, condições históricas de submissão compulsória. Eram concepções completamente etnocêntricas*.

Outra recente invenção da humanidade é o cinema. Elaborada no crepúsculo do século XIX, a "Sétima Arte" não é uma invenção individual, espontânea ou artesanal, como a literatura, a música e a escultura. A invenção do cinema já nasce como produto do conhecimento científico, da criação artística coletiva e do empreendedorismo capitalista (seus inventores foram todos empresários). Ao longo dos anos, essa arte foi perdendo suas características de "teatro filmado", como os filmes produzidos por Georges Meliès, e ganhando especificidades artísticas, como os novos planos e quadros de filmagem e as novas sequências narrativas. Cineastas posteriores foram produzindo novos estilos, mesclando o cinema fictício do mágico Meliès e o documentarista de Louis Lumière, um dos empresários-inventores do cinema. Nesse processo, foram produzidas importantes obras que discutem, de forma direta ou indireta, a educação.

Igualmente, um livro fundamental para quem procura entender a complexidade do tema, com ênfase na atuação profissional do professor em sala de aula, é "Ética e Competência". Nele, Terezinha Azerêdo Rios discute as funções da escola como produto, como conservadora e como transformadora de uma cultura. Discute também a importância de trabalhar noções de alteridade* no ensino básico. Isto é, procurar entender como e por que o outro pensa e age de maneira diferente da minha; desconstruir as desigualdades e valorizar as diferenças por meio do respeito ao outro.

Assistir a Freedom Writers ("Escritores da Liberdade", do americano Richard LaGravenese), filme de 2007 baseado em fatos reais, após a leitura de Terezinha Rios é uma excelente experiência, pois ambos discutem questões muito semelhantes. Enquanto Terezinha Rios fala sobre o rigor como uma das competências exigidas do professor, o qual deve, antes de tudo, cumprir com competência técnica, consciência política e responsabilidade sua função social, LaGravenese nos traz a imagem de Erin Gruwell (interpretada por Hillary Swank, a menina de ouro dirigida por Clint Eastwood), uma professora inexperiente que, aparentemente por esse motivo, chega, para seu primeiro dia de aula como docente, animada com a possibilidade de "salvar o mundo" e de estabelecer novos vínculos e grandes amizades.

O resultado não poderia ter sido outro: Erin perde o controle da turma e acaba questionando a escolha por sua profissão – outrora, um sonho realizado. Mas Erin não se dá por vencida e, mesmo com a desaprovação do pai e com a desconfiança dos corpos docente e discente do colégio, segue em frente com seu nobre sonho e árduo projeto. Então, só a partir da adoção de uma postura mais rigorosa foi que mudanças passaram a ocorrer. Na primeira vez em que não recua diante da dificuldade, do medo e do forte bloqueio construído pelos seus alunos contra sua cor (devido, principalmente, a abusos cometidos contra seus grupos por policiais "branquelos"), ela consegue desenvolver, mesmo que ainda de forma incipiente, o interesse dos estudantes por sua aula. A partir desse momento, sempre agindo com rigor e empatia, a prática da professora melhora sensivelmente. Erin busca, nas seguintes aulas, trabalhar a valorização da diversidade por meio de dinâmicas pedagógicas que elucidam para os alunos as grandes semelhanças que existiam entre seus grupos étnicos, supostamente tão distintos entre si. Nesse caso, da mesma forma como acontece no filme Entre les Murs ("Entre os muros da escola", direção de Laurent Cantet, França, 2008), a professora utiliza como referência de intolerância "O Diário de Anne Frank", publicação dos diários da adolescente judia Anne, em que ela retrata como foram seus três ou quatros anos de esconderijo, quando sua família era procurada pela ditadura nazista. Interessante como enxergar o sofrimento de Anne fez, no caso dos alunos de Gruwell, com que eles se sensibilizassem, percebessem as práticas intolerantes existentes entre si e passassem a valorizar uma educação voltada para os respeito às diferenças.

Sabemos que a visão de mundo de cada indivíduo é profundamente influenciada pelo meio social, familiar, geográfico, político, religioso, o universo e tudo o mais em que ele nasceu e viveu. Isso, inicialmente, é apenas uma constatação, mas passa a ser um problema quando não há um mínimo alargamento desses horizontes culturais. O homem é um ser social, por isso entender o outro é também entender a si mesmo. Miguilim (protagonista da obra "Campo Geral", de Guimarães Rosa), por exemplo, só passa a se entender quando põe os óculos e enxerga o diferente, quando começa a entender o mundo ao seu redor. De forma análoga, vê-se em Freedom Writers que a compreensão que cada personagem apreende acerca de seus próprios atos se torna possível apenas depois do exercício de enxergar o outro.


Poucos sabem, mas a obrigatoriedade da discussão sobre pluralidade cultural em todas as disciplinas do ensino básico é garantida pela legislação brasileira, o que, em geral, ainda não ocorre na prática. Agora, é importante que reivindiquemos e, no caso de professores em formação, atuemos com rigor e responsabilidade nesse sentido.

Assim, ao passo que o professor reconhece a realidade das escolas brasileiras – extensões dessa sociedade homogeneizadora e intolerante – e começa a praticar a alteridade e desenvolver discussões sobre a pluralidade cultural, é possível, sim, construir significativas transformações sociais a partir da escola. Entretanto, é preciso deixar claro que a escola sozinha não realizará grandes feitos. Em busca da valorização da diversidade, Estado, escolas, famílias, movimentos sociais, pedagogos e professores, atuando com ética e competência, devem trabalhar em conjunto, de forma sistemática, para que a utopia de "salvar o mundo" de Gruwell não possibilite apenas conquistas pontuais, mas principalmente conquistas estruturais.

*Alteridade e etnocentrismo: em contraposição à identidade (ideia concebida por mim sobre mim), a alteridade seria a ideia que eu tenho em relação ao outro a partir de suas próprias concepções. O termo normalmente é entendido como antônimo de etnocentrismo, que ocorre quando enxergamos o outro a partir de nossos valores culturais, quando não procuramos entender a coerência interna e específica daquele grupo e quando universalizamos nossa cultura, como se todos vivessem, ou devessem viver, como nós vivemos.

Fonte das imagens (respectivamente): Blog Coelho Branco e Blog Geografia e Tal.

4 comments:

  1. Muito bom o texto, gostei muito pelo modo que usou as citações. Tens grande futuro como escritor se continuares escrevendo desse jeito. =)
    abs

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  2. Muito obrigado, Carlos!
    Continue lendo os nossos textos. Tuas críticas podem ser muito importantes :)

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  3. Parabéns Oton excelente texto, hoje percebemos a educação em seu viés como reprodutora e legitimadora de desigualdades, dadas condições como foram destacadas em seu texto a construção social de cada individuo, e favorece uma determinada cultura considerada legitima com conhecimentos cultos e apropriados observamos o destaque de crianças e adolescentes criadas e adaptadas a tal cultura, a escola ainda favorece indivíduos ligados a tais classes ou grupos que detém tal influencia politica e econômica sobre esta cultura legitimada no corpo social. Abraço ate mais. Por: Matheus Henrique P. da Silva

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  4. Oton, a qualidade deste texto sintetiza o leitor e aluno que és. O qual, diga-se de passagem, me sinto honrada em ter como "colega" de turma. Um abraço!

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