A viagem do amadurecimento



Durante o biênio 2002-2003, uma animação japonesa inesperadamente tornou-se centro de discussões nos melhores festivais internacionais de cinema. O filme surpreendeu duas vezes. Primeiro, por ter vencido o Oscar de Melhor Animação, mesmo se tratando de uma película estrangeira (ainda mais oriental). Segundo, por, ainda que se tratando de uma animação, ter levado o prêmio máximo do Festival de Berlim: o Urso de Ouro.

O filme, idealizado por Hayao Miyazaki, conta a história de uma garota que, por ação do destino, acaba indo parar em um mundo mágico (e, em muitos momentos, mais lógico do que realmente aparenta), onde passa por diversas situações, algumas divertidas, outras nem tanto, até conseguir retornar ao seu mundo.

Aqueles que tomam conhecimento da sinopse do filme podem muito bem encontrar alguma semelhança com Alice no País das Maravilhas. Todavia, a obra de Lewis Carroll já havia sido adaptada pelos estúdios Disney há mais de 50 anos. Afinal, o que há de tão impressionante nesta animação para ter arrecadado alguns dos maiores prêmios das academias de cinema americana e europeia?

Audacioso, Hayao Miyazaki pôs-se a construir, em 125 minutos, uma parábola sobre aquilo que todos (ou quase todos), de forma natural ou ainda dura, um dia passarão: o processo de amadurecimento. O resultado disso foi uma obra-prima não apenas das animações, mas da História do cinema: A viagem de Chihiro.

A VIAGEM

Chihiro Ogino é uma garota de dez anos muito mimada que não perde uma oportunidade sequer de demonstrar aos seus pais - Akio e Yuko - o descontento que tem quanto à mudança da família para outra cidade. Simplesmente não aceita o fato de ter que deixar para trás os seus amigos e o ambiente no qual viveu sua infância. Entretanto, ainda que contra a vontade de Chihiro, a família acaba realizando sua mudança.

No caminho para a nova casa, a garota e seus pais acabam se perdendo – chegam a uma estrada que termina em um estranho túnel. Curiosos, os pais de Chihiro, ignorando as censuras birrentas da filha, decidem ver o que há após o túnel. A família acaba, pois, descobrindo uma espécie de vila, que julgam se tratar de um parque temático abandonado. Explorando esse "parque", encontram uma grande quantidade de comida. Famintos, Akio e Yuko alimentam-se – contra as recomendações da filha –, enquanto Chihiro decide passear. A garota é encontrada por um menino chamado Haku, que a alerta dos perigos de estar ali após o anoitecer.

É nesse momento que a história sofre uma reviravolta. Assustada, Chihiro corre para avisar seus pais do alerta. O aviso, porém, chega tarde demais. O sol já estava se pondo e, com isso, o lugar aparenta sofrer uma espécie de metamorfose. Ao encontrar seus pais, descobriu que eles haviam sofrido um destino digno dos homens de Ulisses após cearem na ilha de Circe: transformaram-se em porcos.

Sozinha e apavorada, Chihiro vê-se presa em um mundo mágico, repleto de espíritos e estranhas criaturas e governado por poderosos feiticeiros. Naquela localidade em particular, quem manda é a bruxa Yubaba, dona de uma ilustre casa de banhos para deuses. Para sobreviver naquele mundo (portanto, não ter o mesmo destino que seus pais), ela precisa conseguir um emprego na casa de banhos de Yubaba.
 
A bruxa, por sua vez, não é tola. Para selar um contrato de emprego na casa de banhos, Chihiro precisa abrir mão de seu nome, o que, no mundo criado por Miyazaki, significa abandonar toda a sua identidade, história e memória. Ainda que a contragosto, Chihiro vê-se obrigada a ceder aos absurdos termos de Yubaba.

Na ausência de seus pais e amigos para lhe ajudar, ela logo percebe que o trabalho na casa de banhos não é nada fácil: criaturas imundas que precisam ser limpas, a competitividade com os colegas de trabalho, monstros descontrolados etc. Em meio a isso, a menina  com o auxílio de Haku e de um misterioso deus sem face  não desiste de buscar uma forma de recuperar seu nome, no intento de salvar seus pais e encontrar o caminho de volta para casa.

UMA HISTÓRIA SEM CLICHÊS NEM MANIQUEÍSMOS

Distante das muitas vezes bobas animações ocidentais, nas quais temos o binômio 'herói x vilão' e um desfecho "feliz para sempre", ocasionado, em geral, por um bem realizado resgate da heroína por seu par romântico, A viagem de Chihiro abre mão de clichês e maniqueísmos. Ao invés de personagens bons e maus, Miyazaki tece pessoas reais, que às vezes são boas e outras vezes más, e isso de acordo com o ponto de vista no qual o personagem é observado: a birrenta protagonista, ao menos no início do filme, gera muito mais o desagrado por parte do expectador do que admiração; já Yubaba, a bruxa tirana que rege aquele mundo, é também  uma mãe amorosa e superprotetora; o deus sem face, por sua vez, talvez seja o mais instigante dos personagens, quando cercado de pessoas gananciosas torna-se violento, enquanto em um meio de tranquilidade é extremamente dócil e prestativo. No final das contas, somos todos assim, não? Produtos do meio em que vivemos, cheios de defeitos e qualidade.

A transformação dos pais de Chihiro foi, sem dúvida, uma das coisas que mais me instigou. Teriam sido eles simplesmente vítimas da crueldade de Yubaba ou teriam sido castigados pelos deuses por se comportarem como verdadeiros porcos  alimentando-se de uma refeição que não lhes pertencia e mimando sua filha, por exemplo , apenas por se darem o luxo de poder pagar pelas consequências de suas ações?



Outra cena que me chamou bastante atenção foi a chegada de uma fétida criatura na casa de banhos que, ao fim do processo de limpeza, revelou-se um belo dragão. Na cultura oriental, como se sabe, os dragões muitas vezes representam espíritos que habitam os rios. A meu ver, é a partir da limpeza desse deus-rio poluído que Hayao Miyazaki demostra sua preocupação com a causa ambiental, tema já abordado em Princesa Mononoke (1997).

AMADURECIMENTO

Mas, no fim das contas, o cerne do filme é o amadurecimento. Temos a oportunidade de observar a cada momento que passa o crescimento de Chihiro (não aquele crescimento físico, cheio de hormônios e centímetros a mais, mas o desenvolvimento mental e espiritual). É um processo gradual e, ainda assim, duro. A partir da independência, do trabalho, do sofrimento, da descoberta do amor e de muitas outras experiências que vivemos e sentimentos que compartilhamos, acabamos nos tornando aquilo que somos. A viagem de Chihiro é talvez a forma que Miyazaki encontrou de nos mostrar que apenas ao fim dessa viagem chamada vida é que podemos dizer que realmente atingimos a maturidade e descobrimos definitivamente quem somos e para onde vamos.


Fonte das imagens: Tumblr.

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