Dilemas de um viciado n°1



"Escolha viver. Escolha um emprego. Escolha uma carreira. Escolha uma família. Escolha uma televisão enorme. Escolha lavadoras de roupa, carros, CD players e abridores de latas elétricos. Escolha boa saúde, colesterol baixo e plano dentário. Escolha uma hipoteca a juros fixos. Escolha sua primeira casa. Escolha seus amigos. Escolha roupas esporte e malas combinando. Escolha um terno numa variedade de tecidos. Escolha fazer consertos em casa e pensar na vida domingo de manhã. Escolha sentar-se no sofá e ficar vendo game shows chatos na TV enfiando porcaria na sua boca. Escolha apodrecer no final, beber num lar que envergonha os filhos egoístas que pôs no mundo para substituí-lo. Escolha o seu futuro. Escolha viver."

Nunca esqueço de como fui levado a assistir Trainspotting, lembro que estava muito entediado e decidi assistir a um filme. Então, consultei um daqueles blogs de cinema que fazem listas dos filmes com as melhores trilhas e eis que me aparece este clássico cult, recheado com pérolas de Iggy Pop e Lou Reed, além de "Born Slippy", da banda Underworld, um do maiores hits que a música eletrônica produziu até hoje.

Trainspotting, baseado no livro homônimo do escocês Irvine Welsh, é o segundo filme do cineasta britânico vencedor do Oscar de Melhor Direção pelo aclamado "Quem quer ser um milionário?" Danny Boyle (o filme de estreia foi "Cova Rasa"). Publicado em 1993, o livro é, hoje, considerado um dos 10 títulos que mais influenciaram os jovens leitores britânicos da década de 90.

A realização do filme, entretanto, só foi possível graças ao roteirista John Hodge, que conseguiu fazer um trabalho incrível de adaptação - chamo atenção a esse detalhe porque o livro é meio desconexo e possui vários narradores. A partir do roteiro de Hodge, Boyle conseguiu mostrar o ponto de vista da maioria dos personagens. Como de praxe, o livro é melhor que o filme, mas este ficou bem à altura do livro, com destaque para a atuação do versátil Ewan McGregor no papel de Mark Renton.

A gíria escocesa trainspotting é  usada para denominar uma atividade sem sentido, mas também pode ser traduzida como um passatempo comum dos jovens britânicos: passar os dias conferindo se determinados trens passam por uma estação em um horário específico, de acordo com as suas tabelas ou qualquer coisa que resulte em uma total perda de tempo. Essa expressão resume bem a vida dos jovens Mark Renton, Sick Boy, Spud e Begbe. Estes jovens escolheram não viver, ou seja, renunciaram a tudo aquilo que transcrevi no primeiro parágrafo, para viver uma vida de drogas pesadas. A preferida deles, exceto Begbe, é a heroína - agora vou alternar entre reflexões que tive no filme e no livro - isso porque, para o narrador Mark Renton, a heroína é uma droga honesta, já que arranca fora aquilo que ele chama de ilusões do mundo contemporâneo. Nas palavras de Renton:
“(...) A vida é entediante e fútil. A gente começa com altas expectativas, depois descarta todas elas. Percebemos que vamos todos morrer sem descobrir as grandes respostas. A gente desenvolve todas essas ideias enfadonhas e intermináveis que só interpretam a realidade das nossas vidas de diferentes maneiras, sem na verdade aumentar nosso conjunto de conhecimento válido sobre as coisas importantes, as coisas reais. Basicamente, a gente vive uma vida curta e decepcionante; depois a gente morre. A gente enche a vida de merda, de coisas como carreiras e relacionamentos, pra ficar livres da ideia de que tudo é inútil. A heroína é uma droga honesta, porque arranca fora essas ilusões. Com a heroína, quando cê se sente bem, cê se sente imortal. Quando cê se sente mal, ela intensifica a merda que já ta ali. É a única droga honesta. Não altera sua consciência.Só te dá um soco e uma sensação de bem-estar. Depois disso, cê vê a desgraça do mundo como ela é, e cê não consegue mais se anestesiar contra ela. (...)”
Trainspotting: jovens observando os trens de uma estação.
Neste discurso, vejo a voz de revolta de Holden Caulfield (de "O apanhador no campo de centeio") ecoando através de Renton, incomodado com a mesmice, a monotonia do dia a dia, explicitando toda a dor da existência em uma cultura de consumo, na qual - nas palavras de Tyler Durden - "trabalhamos em empregos que odiamos para comprarmos merdas que não precisamos", muito comum na nossa realidade, se propagando através de discursos de que, para ser feliz, é preciso ter dinheiro para comprar o carro do ano, roupas de marcas e tudo mais que houver de novo e de melhor.

Atualmente, as drogas trazem muitas discussões sobre as quais devemos parar para refletir. Não vou fazer um discurso de apologia ao uso de drogas, longe disso. Porém, a sociedade cria uma intrincada lógica falsa para absorver e mudar as pessoas que têm comportamento considerado "anormal". Suponhamos que um viciado conheça os prós e contras do uso de drogas, que saiba que irá destruir a si mesmo, amigos e familiares, mas, ainda assim, queira continuar a se drogar, a sociedade, claro, não vai deixar. Não vai deixar porque isso é visto como uma derrota. Os usuários de drogas simplesmente renunciam a tudo aquilo que têm a oferecer à sociedade, uma forma de revolta, uma forma de dizer para todos: "eu renunciei a toda a merda que vocês nos obrigam a aceitar".

Como dizia Schopenhauer: "Viver é sofrer, e é nessa busca de aplacar a dor da existência que os jovens mergulham no mundo das drogas, ou seja, estão buscando uma forma de sofrer menos, em busca de prazer a todo momento. Além do mais, é hipócrita o discurso de pessoas que julgam os consumidores de drogas ilícitas como imorais ou marginais, sendo que a sociedade no geral é viciada em variados tipos de substâncias químicas. A medicina contemporânea está na busca incessante de produzir um medicamento que possa determinar o bem estar das pessoas, as quais estão, cada vez mais, sofrendo de males como a depressão". Aliás, o que dizer do Valium, Librium, Max-Pax, Serenex (medicamentos com mecanismos de funcionamento similares aos da cocaína) e morfina, então? O que as torna diferentes das drogas ilícitas? Essas têm a aceitação das pessoas, são formas que a sociedade usa (legalmente) de minimizar a dor da existência.

Em 1996, ano de lançamento do filme, surgiu a polêmica de que o filme fazia apologia ao uso de drogas ilícitas e, dessa forma, quem o assistia sentia vontade de usar heroína. O que não faz sentido, já que o efeito do filme é totalmente o contrário. A heroína é uma das drogas mais difíceis de se largar e sua falta é causa de uma das piores crises de abstinência. Em seu filme, Danny Boyle retrata uma cena bem aterrorizante de uma dessas crises - além de outras nas quais os viciados aparecem em estados deploráveis. A heroína é aplicada na veia (o pico) e, na maioria das vezes, gangrena, ocorrendo a necrose do lugar onde é injetada, além de sintomas como náuseas e vômitos e os riscos advindos do compartilhamento de seringas.

Caso tenha se interessado, aconselho a você, leitor, que assista ao filme de mente aberta e com estômago forte - ele possui cenas bastante nauseantes - e mergulhe no niilismo que o autor propõe, nos levando a enxergar a vida por um outro ponto de vista. No título, eu proponho os dilemas de um viciado nº1, o que diz respeito a alguns tópicos do livro que mostram a luta de Renton para largar o vício em heroína, o último dilema é o nº 67 - o jovem Mark tentou largar a droga 67 vezes. O meu é o nº1, porque foi a primeira vez que fiz esses questionamentos. E você? O que escolheria? Escolheria viver?


Fonte das imagens (respectivamente): FanPop e M00ch's M00vies.

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