O fantasma da intolerância religiosa

Ler o “Tratado sobre a tolerância” de Voltaire (1694-1778) me levou a refletir sobre o atual papel da religião na vida das pessoas, além do fortalecimento, no Brasil, de denominações evangélicas e a perseguição que muitas vezes essas denominações têm praticado contra cultos de raízes afro-brasileiras.

Na obra em questão, Voltaire nos mostra o caso de Jean Calas, negociante da província de Toulouse, na França, famoso por ter sido condenado injustamente de matar o próprio filho. O caso é considerado um símbolo de intolerância religiosa, já que Calas era protestante – ou seja, parte de uma minoria, em um país de tradição católica – e o seu filho estava se convertendo ao catolicismo para conseguir ser aprovado no exame que o permitiria tornar-se advogado, cargo que, na época, necessitava de certificados de catolicidade. Não conseguindo seu objetivo, frustrado, decidiu dar fim à própria vida.

O fato é que o filho foi encontrado enforcado na porta de sua casa e, enquanto Jean Calas e sua mulher estavam em lágrimas devido à morte do filho, a população de Toulouse, majoritariamente católica, tendo histórico de ser supersticiosa e fanática, acusou Calas de tê-lo matado por se converter à fé católica. O caso acabou indo parar no tribunal. Por fim, os juízes de Toulouse, deixando-se levar pelo clamor popular, condenaram Jean Calas a ser quebrado vivo, depois de estrangulado e atirado numa fogueira ardente. Essa injustiça só foi esclarecida devido à contestação de vários intelectuais, encabeçados pelo próprio Voltaire, que pediam justiça à família de Calas.

Ainda que Voltaire e outros filósofos já no século XVIII denunciassem os absurdos da intolerância religiosa, no Brasil atual grupos evangélicos têm se mostrado cada vez mais intolerantes, especialmente em relação a religiões de matrizes afro-brasileiras.

Logo, me assusto ao ver casos como o ocorrido em Londrina (PR) no mês passado, no qual um maquiador matou três mulheres, incluindo a própria mãe, que se pôs a defender uma das vítimas do filho. A motivação do crime teria sido o fato de as mulheres – suas vizinhas – serem praticantes do candomblé. Em interrogatório, o acusado Diego Quirino afirmou não estar arrependido e alegou ter sido impulsionado por uma ordem de Deus. E o mais assustador é que atos de intolerância como esse têm se tornado um verdadeiro fenômeno.

Aliás, um fenômeno extremamente preocupante é a cada vez mais frequente associação dos criminosos do tráfico a grupos evangélicos, estando estes promovendo a discriminação de cultos de origem africana e, em alguns casos, como no norte do Rio de Janeiro, proibindo a realização dos cultos através de ameaças e até mesmo proibindo o uso de roupas brancas. Irônico, não acham? Os protestantes que foram tão perseguidos, antes mártires, agora algozes, usando da mesma intolerância da qual um dia foram vítimas. 

Diante de casos de intolerância como esses, tento buscar as raízes desse problema me perguntando: onde esses que se dizem "seguidores de Cristo" foram buscar tremendo ódio sobre outras religiões? Afinal de contas, não foi Jesus de Nazaré que pregou a tolerância e o amor ao próximo? Seria então a religião apenas uma justificativa para as pessoas hostilizarem umas às outras? 

O que espero da sociedade não é apenas tolerância, como expressa Voltaire – já que o verbo “tolerar”, segundo o Dicionário Houaiss, significa suportar com indulgência, sendo assim o tolerado considerado um ser inferior que deve ser “suportado” –, mas sim o respeito mútuo entre as pessoas. Sendo o Brasil um país multicultural, é imprescindível que nós trabalhemos na construção de uma sociedade que fortaleça o combate a qualquer tipo de intolerância, seja ela de cunho religioso, político, cultural ou sexual.

Fonte das imagens (respectivamente): Gdargaud e Latuff Cartoons.

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