É democrático ser antidemocrático?

Nas últimas semanas, acompanhamos as lamentáveis declarações de Joelma em entrevista concedida à revista Época. Em meio a um contexto de ascensão do "religiosismo" conservador de determinados setores do cristianismo brasileiro, representados na pessoa do intragável pastor Marco Feliciano, a cantora da Banda Calypso incitou tanto protestos progressistas quanto confusas defesas reacionárias. Não sei se a direita política nalgum momento já soube argumentar de forma razoavelmente coerente, sem atropelar os supostos interesses democráticos presentes mesmo em seu débil discurso – ainda mais débil do que suas ações –, mas desta vez conseguiram superar inclusive os limites de sua ignorância e de sua retórica capciosa.

No Brasil, encontramos muitos abusos da liberdade de expressão concernentes à homossexualidade ("homossexualismo", quando entendido, de forma equivocada, como mero comportamento ou doença). Em novembro do ano passado, J. R. Guzzo, homofóbico colunista da "jornalística" – faço questão das aspas – Veja, comparou gays a cabras (sim, o animal). Agora, mergulhando de cabeça na correnteza das comparações esdrúxulas, Joelma estabeleceu relações semânticas entre homossexuais e drogados, reforçando, de forma discriminatória, os preconceitos comportamentalizantes e patologizantes, religiosos ou não, aplicados por aqueles que optam pelo termo "homossexualismo". Seus defensores, geralmente os mesmos que só veem uma "jogada de marketing" no legítimo manifesto político de Daniela Mercury, utilizam a democracia e a liberdade de expressão como discurso. “Porque hoje ninguém pode falar mais nada, que tudo é preconceito, que tudo é discriminação. Já tá chato esse papo do politicamente correto”. Como disse a empregadora progressista, que apoia a PEC das trabalhadoras domésticas, "me poupem..."

Para aqueles que acompanham os debates políticos, observando as práticas efetivas empreendidas por certos parlamentares, por seus partidos e por seus eleitores, assim como as aplicadas pelos indivíduos que recusam seu papel de cidadãos (ao acreditar na existência de alguma alquimia que os distancie da vida política), ficará claro que meu primeiro parágrafo está cheio de hipérboles. Afinal, os termos "ignorância", "retórica" e "capciosidade" são sinônimos de outros como "Malafaia", "Serra" e "Crivela". Não há, portanto, motivos concretos para afirmar que esses militantes contra a democracia – sempre em luta, coitados, pelos seus valores democráticos – tenham "evoluído". Suas asneiras, na verdade, continuam as mesmas: agem de forma antidemocrática em nome de sua democracia. 

Eis a frase que me instigou a escrever esse texto: "Nós vivemos num país democrático; não podemos limitar a liberdade de expressão de ninguém. Talvez a Joelma apenas não tenha conhecimento suficiente para manifestar uma opinião mais elaborada sobre o tema". Não quis manifestar naquele momento meu desacordo em relação ao enunciado porque não estudo com a turma de filosofia que assistia a essas palavras nem frequento a universidade em que elas foram proferidas. No entanto, não pude deixar de notar a confusão provocada pelos significados que compõem o significante “democracia” mesmo nas elucubrações de pessoas mais bem instruídas (não estou sendo irônico; a pessoa em que estou pensando como exemplo realmente é inteligente e bem instruída). (Antes que possam comentar que sou "muito radical", já que a cantora publicou nota e vídeo de "esclarecimento", relembrem o vídeo em que Joelma não deixa dúvidas sobre seus preconceitos homofóbicos.)


Bem ao gosto dos academicistas inertes e "redondos", poderíamos perfazer voltas e voltas teóricas até chegarmos à raiz da questão, que, por mais que não seja simples, de forma alguma é tão incompreensível quanto podem nos fazer crer. Não quero dizer, obviamente, que as discussões acadêmicas são inúteis. Como argumentei em "Vendados e vendidos", o problema está fundamentalmente na "roda sem fim" em que se tornou a maior parte do conhecimento produzido na universidade. Nesse sentido, ressaltando a necessidade de que a teoria derrube os muros dos campi universitários, trago para discussão o que percebo estar no centro do debate sobre nossas liberdades democráticas: a liberdade do outro.

Para que meu texto não os consuma em excesso, fazendo com que se sintam desmotivados a procurar artigos mais interessantes acerca dum tema tão importante quanto a relação entre a democracia e a liberdade de expressão, digo-lhes, enfim, o que venho tentando dizer há cinco parágrafos acima: num espaço socialmente construído e compartilhado, não há liberdades totais, no sentido em que muitos parecem conceber. Posto que feliz e inevitavelmente não vivemos isolados, dividimos espaços sociais e convivemos com tamanha diversidade humana, as liberdades de todos só podem ser garantidas caso as liberdades individuais não firam as de outrem. Isto é, o "de todos", que nesse caso poderia ser traduzido para "democracia" (ou "democráticas"), implica, sim, na limitação de licenciosidades individuais que interfiram no bem estar coletivo. Em outras palavras, a liberdade democrática plena só é possível quando o respeito à liberdade do outro é tomado como prioridade de uma sociedade.

Em suma, se não se defende a liberdade (como vimos, o respeito ao outro) antes de qualquer outra reivindicação, não há como falar em defesa de valores democráticos de fato. Portanto, quando ouvirem qualquer pessoa defendendo de forma enfática a liberdade de expressão em casos como a entrevista de Joelma e os discursos de Silas Malafaia, desconfiem! E, se concordam, perguntem: é democrático utilizar os valores democráticos como discurso, quando contrário à democracia, à liberdade, ao respeito ao outro? Ou ainda: é democrático ser antidemocrático?

Fonte da imagem: Divo Cafeína.

8 comments:

  1. Gostaria de saber que tipo de democracia é essa em que podemos falar o que queremos mas não podemos ser o que somos.

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  2. É isso aí, henrique! Teu comentário resume muito bem a discussão e a indignação de que precisamos.

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  3. Que discurso preconceituoso! Em meu ponto de vista o ser humano pode sim expressar-se da maneira que lhe convêm, assim como você o fez agora de forma preconceituosa não só a cantora- ainda mais débil do que suas ações- Como o próprio a sita. Mas como os homo afetivos na parada Gay que não respeitam crianças e andam despidos na rua, como o carnaval em que pessoas andam semi-nuas nas ruas. A banalização da violência e de praticas sexuais livremente! Podre crianças do futuro desse pais. Sim... Democracia em sua forma literal! "O direito de expressão!". Não é o que vemos nos dias em que estamos vivendo, estamos voltando a uma ditadura homo afetiva? Em que um cristão, judeu, ou seja qual for sua religião não pode expressar sua opinião? Somente se a mesma favorecer aos homo afetivos? Não sou homofóbica, muito pelo contrario, sou a favor de uma democracia em que qualquer um pode expressar e defender seu direito e dar sua opinião! Isso sim deveria ser respeitado!

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  4. Arnaud, obrigado pelo comentário.

    Fiquei confuso. O que você entende por preconceito?

    Ao contrário da Joelma, expus de forma argumentada meu posicionamento, demonstrando que conheço suas concepções homofóbicas. Primeiramente, apresentei seus discursos e os relacionei às práticas e ideias antidemocráticas. Somente depois de fundamentar com relativo conhecimento das concepções da cantora é que desenvolvi meu ponto de vista. Portanto, não vejo nenhum "conceito ou ideia pré-concebida" em meu texto.

    Realmente, as pessoas devem expressar-se da forma como lhe convêm, mas devem também compreender as repercussões de suas palavras. Relativizar isso me parece querer diminuir a violência que discursos como esse trazem. De certa forma, essa violência verbal pode ser ainda mais grave do que a física, pois ela alcançará grande repercussão, chegando até outras mentalidades preconceituosas, reforçando, assim, seus preconceitos.

    Enfim, uma das principais características do "preconceito" é tomar uma posição de outro o qual nem tens conhecimento. Generalizar atitudes individuais a grupos mais amplos e diversos é uma das principais formas de preconceito. Por isso, dizer que homoafetivos não respeitam crianças é terrível porque é generalizante. Se eu pegasse como exemplo de Flávio Pinto Coelho, arquiteto que matou uma trabalhadora doméstica a facadas, e dissesse, com base nisso, que os arquitetos são criminosos e não respeitam a vida dos trabalhadores, você provavelmente não se sentiria bem. E olha que nesse caso meu discurso seria minimamente violento, já que arquitetos não sofrem discriminação generalizada como homossexuais.

    Outra coisa: o direito de expressão, a "democracia em sua forma literal", deve estar sobreposto ao direito de ser quem se é?

    Mais uma (minha nossa, é muita coisa!): "voltando a uma ditadura homoafetiva"?!!!!!!!!
    Cara, você mora em que país?!!!!!!!!

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  5. Oton, muito bem exposto seu ponto de vista, bem como rebatida a opinião que se diz "não preconceituosa". É uma questão realmente delicada o limite da democracia e que não se deve pôr um ponto final nunca, visto que conceitos complexos estão em constante adaptação. Contudo, ficou muito bem resumido a forma como devemos analisar o respeito, ou a falta deste, em discursos ditos democráticos. O certo é que deve haver respeito sempre.

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  6. Muito bem, voltando ao angulo preconceito! Muito bem explicado! Pois bem, sem qualquer interesse creio eu, você não buscou o fundamento do comentário da mesma. Certo! Não mencionei em momento algum que homoafetivos desrespeitam crianças e sim em que um determinado evento anual o mesmo é decorrente. Como em outro evento também mencionado. Claro, não sitado por você em seu comentário (jugando), o mesmo de forma ofensiva. Desculpe-me, se pude me fazer entendedora do que lhe foi mencionado em deu texto, o que você define como débil? (Retardada? pessoa mentalmente atrasada? Débil mental?). Desculpe-me, para mim isso é claramente um sinal de preconceito sim (Forma de pensamento na qual a pessoa chega a conclusões que entram em conflito com os fatos por tê-los prejulgado);Você sem avaliar por trás a uma opinião (comentário feito) o pré-jugou. Sem que o mesmo o fosse avaliado com outro ponto de vista. Para mim um claro sinal de desrespeito a um outro ser humano, que independente do que faça para viver, pratique ou que fale não deveria ser sitado assim. Att

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  7. E com relação a falta de respeito! Bem ela está em todos os setores dessa que clamamos de sociedade democrática! Para mim: O meu direito acaba quando inicia-se o direito do outro. Não quero a banalização do sexo e da violência, em que homens e mulheres saem nus nas ruas! Fazem sexo onde bem entendem! Estar assistindo TV com meus filhos e ter que mudar de canal por que ah senas de sexo, violência na TV. Sair com meus filhos e ver seja um casal hétero ou homo na rua se agarrando.
    Entendo de forma direta e indireta o preconceito existente na sociedade direcionado a homoafetivos, pois vivi bem próxima do mesmo com um familiar que é sim homoafetivo.
    Não me envergonho do mesmo muito pelo contrário!
    Agora, não aceito de maneira alguma que por uma pessoa mostrar seu ponto de vista ela seja retalhada pelo mesmo.
    Ok, você não aceita, tudo bem... Ninguém é obrigado a aceitar o ponto de vista de ninguém, mas não é por isso que ele deve ser desrespeitado.
    Creio eu ter sido rude inicialmente, mas essa foi a educação que recebi, tanto da pessoa que eu menciono ser homoafetiva em minha vida quanto a tantas outras na mesma.
    Se você quer respeito e credibilidade ao seu blog, ele deverá se torna imparcial, sem desrespeitar ou violar o direito de expressão de quem quer que seja. Faço das suas minhas palavras: Realmente, as pessoas devem expressar-se da forma como lhe convêm, mas devem também compreender as repercussões de suas palavras.

    Att...

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  8. Apesar de nossas profundas discordâncias, obrigado por participar do debate, Arnaud. Sinto falta de mais contribuiçoes por aqui. Só para esclarecer: a palavra "débil" carrega um sentido muito mais amplo do que o que vocêenxergou no meu texto. A palavra pode ser usada, como foi no meu primeiro parágrafo, como sinonimo de "fraco". Ou seja, o que eu disse foi que o discurso e as ações motivadas pelos pontos de vista da direita politica são facilmente questionaveis. Nao há nenhuma relação com "atraso mental". No caso de líderes políticos que mencionei, vejo manipulação ideológica com interesse de manutenção de seus privilégios econômicos e sociais. No caso de Joelma, provavelmente tem a ver com alguém que, influenciada pela ideologia dominante, nao se dispõe a conhecer o outro antes de desrespeitar a identidade alheia. Mais uma vez, em nenhum dos casos existe "retardo mental" - realmente seria muito preconceituoso da minha parte afirmar algo assim. O que existem são ideias superficiais que sao propagadas de formada disseminada e que encontram hospedeiros bastante receptivos numa sociedade em que o individualismo tende a ser acentuado cada vez mais. O problema nao é a Joelma, mas o contexto em que ela viveu. Nao é por isso, porém, que ela deva ser eximida de responsabilidade. Recapitulando, seus discursos sao débeis pq sao claramente contraditorios. Meu objetivo com esse texto demonstar a contradição, nao calar a Joelma. Mas propor reflexões que normalmente sao negligenciadas. É mais democrático que ela aprenda sendo estimulada a manter contatos menos preconceituosos com o outro do que sendo reprimida. Portanto, suas ultimas observações nao se encaixam aqui. No fundo, nós concordamos, mas talvez eu nao tenha conseguido expor tao bem meus argumentos. Indico que leia textos mais bem elaborados sobre os excessos da liberdade de expressao.

    Igor, muito obrigado pelo comentário :)

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