O que aprendi com as trabalhadoras domésticas

Há aproximadamente um mês, três trabalhadoras domésticas que estavam retornando aos estudos após anos de intervalo procuraram meus serviços em busca de aulas particulares de introdução aos estudos da língua portuguesa e da produção textual. Sem titubear, motivado pela importância que eu poderia representar na retomada do percurso escolar daquelas que sempre estiveram presente em minha vida tão classe média, aceitei a proposta. Talvez tenha sido um ponto de partida desafiante para quem ainda não tinha nenhuma experiência mais séria como professor, mas, encarado com imensa responsabilidade, esse trabalho já me proporcionou, como professor em formação, verdadeiros “saltos qualitativos”. Espero sinceramente que as mulheres que estudam comigo estejam aprendendo tanto quanto eu com elas. 

O objetivo deste texto não é, como pode ter parecido, debater questões pedagógicas relacionadas à “educação para jovens e adultos” nem demonstrar como professores podem aprender tanto (e ensinar ainda melhor) a partir de um contato mais dialógico com suas alunas e alunos. Isso, porém, estará evidente nos parágrafos seguintes. Meu objetivo é trazer para o conhecimento dos leitores as principais questões levantadas num dos debates mais interessantes que já tive a honra de participar. Numa de nossas últimas aulas, realizamos a leitura de um texto publicado no blog do cientista político Leonardo Sakamoto e colocamos em discussão a  Emenda Constitucional (EC) nº 72/2013, aprovada pelo Congresso a partir da Proposta de Emenda à Constituição nº 66/2012, a chamada "PEC das Domésticas". O mais instigante foi que todas participaram ativamente do debate, contribuindo com reflexões interessantíssimas, já que possuem amplo conhecimento prático acerca de suas condições.

Em manuais jurídicos, a definição de trabalho doméstico está relacionada à sua “improdutividade” ou à sua "finalidade não-lucrativa", como define o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), uma vez que se constitui num trabalho "em âmbito residencial" que não gera lucros para o empregador. Sustentados por essa especificidade, disseminam-se argumentos de orientação castradora das conquistas trabalhistas. O pagamento do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço), por exemplo, direito que ainda depende  de regulamentação posterior para entrar em vigor, o qual causaria uma elevação desproporcional dos encargos e das despesas para os patrões, provoca enorme polêmica. Parlamentares de partidos mais direitistas, como PSDB e DEM, já se levantaram em “defesa da preservação do emprego”, pois estariam muito preocupados com a possibilidade de a EC desencadear demissões em massa desses trabalhadores. Afinal, “possuir” uma “empregada” passaria a ser “artigo de luxo”, condição incompatível à da maioria dos empregadores domésticos brasileiros. 

Não esqueçamos, porém, um aspecto fundamental dessa nova legislação: a questão que envolve as carteiras de trabalho. Como qualquer outra conquista trabalhista assegurada pelo artigo sétimo (Art. 7º) da Constituição, só estarão garantidos os direitos daqueles que tiverem sua carteira devidamente assinada. Ora, o percentual de trabalhadores domésticos que possuem situação regulamentada é mínimo. Na prática, a EC proporcionará benefícios econômicos para poucos.

Sendo assim, não há, à minha leiga observação, como ocorrer milhões de demissões em decorrência desses direitos conquistados. Com a Emenda em vigor, como afirmou uma das estudantes, há um risco real de algumas demissões acontecerem, mas, mesmo que este número não seja tão insignificante, mais trabalhadores serão beneficiados do que prejudicados, além de um terceiro grupo (formado pela maioria) que, segundo ela, nem perceberá grandes mudanças financeiras. Sobre essa discussão, vale lembrar: a Constituição brasileira concedeu, em 1988, direitos como o salário mínimo para os trabalhadores domésticos. Vinte e cinco anos depois, não vimos demissões em massa, por um lado; nem conquistas salariais efetivas e significativas, por outro.  Nesse sentido, a EC não é negativa ou prejudicial; ela é, sim, incompleta, visto que poderá ser relativamente impotente em termos salariais. Mas não esqueçamos também que os novos direitos não dizem respeito apenas a questões financeiras, mas igualmente a condições de trabalho, como o estabelecimento da carga horária máxima de trabalho.

De que a Emenda representa claros avanços democráticos e sociais não tenho dúvida, assim como não há como discordar que existem enormes obstáculos que limitam sua plena execução. Já pontuei que as carteiras não serão assinadas de um dia para o outro. Hábitos e mentalidades não se modificam de forma tão repentina. Logo, os acordos particulares que predominam hoje predominarão ainda por um longo tempo, mesmo que seja possível haver pressões ligeiramente maiores pela regulamentação do trabalho. 

Além dessa limitação, pensemos em exemplos como o seguinte: aquelas que possuírem carteira assinada, mas tiverem filhos pequenos (muitas vezes não aceitos na casa dos patrões), não terão condições de contratar babás em regime formal. Haverá, nesse caso, uma enorme contradição. No entanto, embora seja coerente, este argumento, utilizado pela única empregadora doméstica presente na discussão, não parece ter substância suficiente para invalidar ou mesmo diminuir a importância da EC, uma vez que situações como essa já ocorriam anteriormente. Medidas complementares nesse sentido, como a construção de mais creches públicas – reivindicação fundamental para os movimentos feministas e trabalhistas –, foram propostas pelas estudantes.

Mais uma vez, tornam-se claras as pesadas limitações dessa legislação, mas sua validade e importância continuam demonstradas e aqui defendidas, tanto por mim quanto por quatro das cinco estudantes – a quinta continuou indecisa, mesmo que também tenha elaborado relevantes reflexões. 

Esta, que não é patroa nem trabalhadora, ainda considerou a possibilidade de os parlamentares estarem utilizando esse debate com dupla função: promover sua imagem forjada como combatentes legítimos da desigualdade social e ludibriar a população. Sobre esse aspecto ludibriante, afirmou que essa medida servirá propositalmente apenas como elemento contemporizador das tensões sociais, sem garantir conquistas efetivas. Em contrapartida, uma das trabalhadoras domésticas presentes na aula ressalvou o impacto a longo prazo que a EC pode desencadear sobre a mentalidade dos brasileiros, herdeiros de uma longa história de naturalização do servilismo e das hierarquias sociais.

De acordo com sua observação cotidiana das condições trabalhistas (sentidas na pele, nas costas e no bolso) e dos preconceitos das classes média e alta (sentidos na dignidade) em relação à natureza de seu serviço (“improdutivo”, “degradante”, “leve” e “fácil”), ela também reiterou a fragilidade dessas conquistas quando avaliadas a partir de uma perspectiva meramente economicista. No entanto, enfatizou que agora o trabalho doméstico ganhou muito em visibilidade, conquistando maior valorização e reconhecimento da sociedade no decorrer dos próximos anos. Isto é, ao passo que o trabalho doméstico passa a ser igualado constitucionalmente às outras categorias, equiparando seus direitos, a Emenda surge como arma importantíssima contra os preconceitos e as discriminações classistas e sexistas.


Antes de concluir, cabe lembrar o que a historiadora Emília Viotti da Costa diz, em seu livro “A abolição”, a respeito de duas leis que versaram sobre a extinção do tráfico negreiro internacional no século XIX, a de 1831 e a de 1850 (esta conhecida como Lei Eusébio de Queiroz). Embora tenha sido considerada no período apenas uma medida “para inglês ver”, já que as condições econômicas (alicerçadas estruturalmente na mão-de-obra escrava) e as mentalidades, que naturalizavam a escravidão (as relações escravistas eram comuns há mais de três séculos), dificultavam sua plena implementação no Brasil, “a lei foi mantida e, se não conseguiu interromper o tráfico, contribuiu para sua desmoralização”. A curto prazo, pouco mudou naquele contexto, mas a partir de então, mesmo que o tráfico tenha persistido por mais alguns anos, “sua legitimidade fora questionada”, pois “passara a ser uma atividade ilícita”. 

Ressalto que os contextos históricos e sociais são completamente distintos quando estabelecemos relações entre a discussão sobre a EC e a abolição do tráfico negreiro – hoje, o poder econômico é muito mais central na sociedade brasileira do que em fins do século XIX, quando o domínio de terras e pessoas tinha uma relevância muito maior –, mas a historiografia brasileira sobre o abolicionismo, que em muitos trabalhos destaca as relações dialéticas entre a legalidade e a legitimidade da propriedade escrava, nos fornece elementos essenciais para nossas reflexões sobre o presente. Aqui, percebemos uma clara aproximação com a elaboração intelectual da última trabalhadora doméstica apresentada neste texto. 

Por fim, quero chamar atenção para a origem das ideias apresentadas neste texto. Aprendi muito com essas estudantes incríveis que me procuraram para ensiná-las a transitar pela linguagem escrita com a mesma desenvoltura que apresentam quando se expressam por meio da oralidade. Partidário da política linguista praticada por Marcos Bagno, o militante brasileiro de maior destaque quando se trata da luta contra o preconceito linguístico, tentei demonstrar que as dificuldades gramaticais encontradas por essas trabalhadoras no seu reencontro com os estudos da língua portuguesa não as tornam incapazes de elaborar reflexões tão perceptivas quanto as que foram mencionadas aqui. 

Não quero me arriscar a pôr palavras em suas bocas assim, de forma generalizada. Por isso, concluo, de maneira particular (a partir do que aprendi com elas), que a Emenda Constitucional nº 72/2013 será positiva para as trabalhadoras e para os trabalhadores domésticos, tanto financeiramente (mesmo diante das inúmeras limitações existentes) quanto em termos de condições de trabalho e de mentalidade. 

Em tempo: segundo reportagem da Folha de S. Paulo, com base nos dados fornecidos pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), na última década duzentos mil trabalhadores brasileiros abandonaram o serviço doméstico e migraram para outras categorias em busca de melhores condições de vida... Ótimo! Que aprendamos a viver sem estabelecer relações de servilismo, e que estas desapareçam! Que nossas mentalidades mudem no sentido de valorizar o trabalho em detrimento do capital! Que a desigualdade social não seja mais vista como necessária, condição fundamental para que possamos dar passos mais largos na construção de uma sociedade em que o respeito ao outro, o igualitarismo, o direito à resistência e a soberania popular sejam prioridade!

Fonte das imagens (respectivamente): Brasil de Fato e Câmara dos Deputados.

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