Desde o despertar de sua consciência, ela vivia em crise. Perguntava-se sobre o mundo, a vida, o estudo, a miséria – que ela não presenciava, apenas ouvia falar – e tudo o mais.
Em casa, ao mesmo tempo em que era tratada como uma princesinha mimada, viam-na como uma espécie de aberração. Que menina mais esquisita, diziam, vive fazendo perguntas demais, músicas demais, nunca entende nada, parece até uma retardada. Estranho falarem isso de alguém que apenas queria entender as coisas, que apenas queria entender o mundo ao seu redor. Estranho. Mas era o que acontecia. E, cada vez mais, com maior frequência.
Na escola, era calada. Não que não tivesse perguntas a fazer por lá também. É que, lá, não tinha intimidade com as pessoas. Não sentia conforto e acolhimento suficientes para mostrar sua verdadeira personalidade, tão criticada pelos familiares. Ora, se até os meus pais acham que estou errada e que deveria parar com essas coisas, é porque realmente devo estar.
Qual o sentido da vida? Por que umas pessoas nascem ricas e outras pobres? Para que se casar, se as pessoas sempre se separam? Por que não posso ser feliz, se não comprar uma boneca da Estrela? Por que vejo meninas e meninos mais velhos se beijando, enquanto que nunca vi meus pais se beijarem – a não ser, é claro, aquela vez em que meu pai foi promovido. E o tio Jorge? Ele arranjou um namorado. Não entendo porque o expulsaram de casa. Será que é porque ele fica com essa mania de beijar os outros na boca e não faz como meus pais, que há anos não se beijam? Sei lá, beijar na boca deve ser errado. Logo se vê que os que mais beijam são os adolescentes, os que não têm nada na cabeça. Devo parar de tanto fazer perguntas? Acho que sim, nunca obterei respostas mesmo. Sou a única que se interessa por elas.
Quando crescer, quero ser escritora de contos infantis. Quero escrever para que aquelas crianças que sintam falta de eco à sua voz, que se sintam seres estranhos nesse mundo restrito, dominado por adultos que se esforçam para engessá-lo e engessá-las, enxerguem novos horizontes. Quero escrever para ampliar a visão de mundo daquelas e daqueles que, como eu, são ensinados a não querer aprender. Te prometo, então, Kitty: nunca deixarei de pentelhar os outros com minhas perguntas! Só assim encontrarei o universo que tanto procuro! Só assim poderei chegar um dia a ser escritora, mesmo que seja daquelas bem ruinzinhas.
De criança para criança, o mundo mágico, azul e dourado de Mariana conquistou os ouvidos de Kitty, amiga com quem trocaria milhares e milhares de correspondências, aperfeiçoando sua imaginação, sua poesia, suas palavras e sua percepção. Mariana e Kitty viveram em épocas distintas, mas nunca deixaram de estabelecer a mais intensa, vívida e transcendental das comunicações humanas. A história não acaba aqui. Mariana ainda conhecerá as angústias de Kitty. Mariana ainda conhecerá o caos reluzente da diversidade humana. Kitty, a garota mais paciente, companheira e desvairada que o mundo já conheceu, não morrerá; estará sempre a receber novas correspondências. Mariana, sim, terá seu fim. Mas até lá enriquecerá a consciência da natureza sobre sua própria existência. Enriquecerá a vida de Gaia, nossa terra maltratada.
Fonte: Blog do Citadini.
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