Em defesa do SUS

Falar de saúde pública no Brasil é complicado. Somos muito bem informados, tanto pela direita quanto pela esquerda política, acerca dos inúmeros problemas encontrados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Temos filas para atendimento que são intermináveis, poucos profissionais disponíveis nos hospitais, escassez de equipamentos e medicamentos, baixos salários, negligência médica etc. Disso todo cidadão brasileiro tem conhecimento. No entanto, pouco é discutido a respeito dos avanços ideológicos e conceituais representados pela implementação do SUS a partir da Constituição de 1988 e das Leis Orgânicas da Saúde, de 1990.

Sobre a discussão a nível internacional, aqueles que assistiram ao filme Sicko, do norte-americano Michael Moore, talvez percebam o quanto estamos avançados em relação a grandes potências econômicas como os Estados Unidos, ainda que o documentário se detenha apenas à comparação entre as políticas públicas para a saúde encontradas em seu país de origem e em países europeus e latino-americano, como Cuba.

O documentário demonstra como o sistema de saúde dos EUA está completamente privatizado, fazendo com que toda a população seja obrigada a recorrer a convênios médicos cujo valor normalmente é altíssimo. Caso não tenha dinheiro suficiente nesse país maravilhoso, você ficará sem atendimento algum, seja qual for o seu problema de saúde. Em contraposição, na França e na Inglaterra, por exemplo, onde os tributos são considerados altos à primeira vista, o sistema paga até sua passagem de ônibus para que você procure um hospital. Todos os procedimentos são gratuitos, e o sistema parece funcionar bem.

No Brasil, enquanto focalizam apenas os problemas mencionados – que merecem nossa principal atenção, claro –, os "formadores de opinião" não se preocupam tanto quanto deveriam em ressaltar a grande conquista que o SUS representa para os movimentos sociais ligados à área da saúde. Os obstáculos à sua plena implementação são inúmeros, mas esse sistema, que completará três décadas de existência daqui a poucos anos, emerge como uma força contra-hegemônica no Estado capitalista em que vivemos.

No sentido oposto ao da concepção positivista, o SUS entende a saúde na sua acepção mais holística, como um processo que nada tem a ver com ausência de doença, mas com qualidade de vida. Assim, a atuação dos profissionais do SUS pode ser ampliada para outras funções e espaços a partir de uma nova visão conceitual muito bem apropriada por esse sistema, além de agregar profissionais normalmente encontrados fora do ambiente hospitalar, como o pedagogo. Além disso, a saúde passa a ser concebida em relação a outros setores das políticas públicas. Para o SUS, saudável não é aquele que não se encontra enfermo; é aquele que vive bem, com boas condições sanitárias, higiênicas, educacionais, boas condições de alimentação, moradia, lazer.

Diante dessa perspectiva, o sistema público de saúde vigente no país defende três princípios básicos: universalidade, equidade e integralidade. Dizer que o SUS defende o princípio da universalidade significa dizer que toda pessoa presente em território brasileiro, mesmo que não tenha nacionalidade brasileira, tem direito ao atendimento público. Já a equidade diz respeito à percepção das diferentes necessidades de cada usuário; é o princípio que "discrimina positivamente", priorizando aqueles que mais necessitam. Mas, segundo a militância política que luta em defesa do SUS, a conquista mais importante foi a instituição do princípio da integralidade.

Segundo a Constituição, o "sistema único" deve estar organizado de acordo com a diretriz do "atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais" (Art. 198). Conforme alguns autores, o termo "atendimento integral" está inserido no princípio da integralidade, mas não comporta todos os significados deste – presente apenas de forma implícita. Se a enfermagem, a terapia ocupacional, a fisioterapia, a medicina e outras áreas ligadas à saúde, são profissões fundamentadas na ideia do cuidado individual e coletivo, precisamos trabalhar e tornar explícita a noção de que o hospital, como ambiente em que os níveis de atendimento secundário e terciário são mais evidentes, é apenas um dos espaços que compõem o circuito do cuidado pleno ao indivíduo.

Enfim, num contexto em que os convênios privados no Brasil foram bastante expandidos e continuam em expansão, apresentando-se como um novo mercado bem lucrativo, é importante que saibamos valorizar as conquistas que o SUS representa para podermos reivindicar com mais segurança a garantia desses direitos instituídos. Acredito que todo cidadão consciente, por mais que não veja o socialismo como alternativa interessante, tenha chegado a conclusão de que as relações capitalistas hoje predominantes não mais dão conta dos avanços democráticos de que necessitamos para uma vida social mais justa, igualitária e descontraída. Portanto, reitero a importância da defesa desse sistema, que é um dos mais avançados do mundo em termos teóricos, pois, numa sociedade estruturalmente desigual, excludente e invisibilizante, propugna, na contramão, o respeito à vida de todas as pessoas e povos.

Logo, defender o SUS é defender a saúde pública; é defender uma frase de apenas 35 letras, mas que só foi conquistada em decorrência de longas lutas empreendidas por movimentos sociais e partidos políticos: "a saúde é direito de todos e dever do Estado" (Art. 196). Nesse sentido, negar ou subdimensionar conquistas alcançadas depois de tantas lutas significa negar ou subdimensionar também a validade e a importância dessas e de outras lutas. É óbvio que novas exigências, decorrentes de questões objetivas e subjetivas presentes em um novo contexto, surgem e devem ser transformadas em lutas políticas, mas não podemos desvalorizar nossas conquistas anteriores. Se não, erramos contra nós mesmos. Ao passo que percebemos o poder ideológico que o SUS representa, as lutas tornam-se mais a favor da efetivação de seus princípios do que da substituição deste por outro modelo, como o falido norteamericano. Sendo assim, é importante que defendamos o SUS (com base nos seus pressupostos) dos ataques da direita, exigindo, como já grita grande parte da militância de esquerda, “um SUS inteiro, não pela metade”.

É a partir dessa perspectiva que devemos analisar o programa Mais Médicos, anunciado recentemente, que, além de outras determinações, prevê a importação dos médicos estrangeiros e o aumento da duração do curso de Medicina no Brasil, exigindo a atuação desses profissionais em formação no Sistema Único de Saúde nos últimos dois anos da graduação, a qual passará a ser de oito anos.

Fonte das imagens (respectivamente): MGRegueiro e Medicina UFS.

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