Dogmatismos e tradução cultural

Religiosos dogmáticos são um saco. Assim como um saco também são ateus dogmáticos. Afinal, o dogmatismo impossibilita qualquer posicionamento mais profundo e esclarecido em relação à vida. 

Seja hinduísmo, judaísmo, islamismo, santo daime, umbanda, cristianismo ou candomblé, o problema é o dogmatismo, não a religião. Digo, o “mau” religioso é aquele que enxerga apenas o seu mundo e que pretende impor suas verdades sobre as verdades dos demais. E existem bastante religiosos que passam muito distante desse estereótipo. Outro problema é que sempre quando há predominância e poder combinados cria-se um ambiente favorável ao surgimento da dominação.

É exatamente esse o contexto em que se insere o cristianismo na América e na Europa, assim como o islamismo no norte da África e o judaísmo em Israel. Portanto, entendo que não temos o direito de crucificar ou ridicularizar as religiões, mas as formas de dominação impetradas por aquelas que sempre estiveram na bainha ou na gola do poder. Veja, são raros os casos em que encontramos religiões dissociadas do poder pregando dogmatismos. Poder, dominação, dogmatismo e exploração caminham juntos, entrelaçados.

Se a verdade é uma construção humana e portanto histórica, social, linguística e cultural, não um dado da natureza ou uma informação estática e imutável fornecida por uma força maior, reificada, concreta e absoluta, quem somos para desmerecer a crença do outro? As religiões constituem as identidades de diferentes povos dispersos pelo mundo. Portanto, menosprezar os religiosos por serem religiosos é menosprezar sua identidade, bem como, por consequência, desprezar a diversidade humana. Sendo assim, as críticas cabem menos a essas pessoas do que às instituições, que em muitos casos burocratizam e controlam a fé dos religiosos. 

Não se trata, pois, de uma oposição reducionista e maniqueísta entre ciência e religião, razão e fé, demonstração e ideologia. Eu, que me considero ateu, mas em busca de algum conhecimento e identificação espiritual (não necessariamente religiosa), aprendi algumas das coisas mais racionais que trago comigo a partir do contato que me foi possível estabelecer com diferentes religiões e sábias e sábios espirituais. Perceber-nos como mais um elemento/movimento da natureza que vive em oscilação entre o desequilíbrio e o equilíbrio energético torna-se muito mais visceral quando mantemos contato com conhecimentos espirituais e medicinais de origem chinesa, japonesa, coreana e indiana, por exemplo.

Como disse anteriormente, o debate não pode ser reduzido a uma oposição reducionista entre demonstração e ideologia, o que acaba por criar debates infrutíferos e “epistemocêntricos” entre ateus e religiosos. O que pretendo expor é que a demonstração não é uma qualidade restrita à ciência nem, nesse caso, a ideologia à religião. Na verdade, demonstração e ideologia podem estar e estão presentes em todas as formas de conhecimento. A ciência, ao contrário do que é dito na universidade, não é amoral, é também ideológica. A religião, por outro lado, não é apenas alma ou espírito, mas também corpo e matéria.

“Se Deus existe, então me prova” é uma frase que demonstra apenas o desconhecimento do que me parece realmente significar a ideia das divindades. Frases como essa não são reducionistas porque apóstatas – afirmar isso seria dizer que as verdades religiosas não podem ser contestadas, o que não é o que estou defendendo –, são reducionistas porque partem do pressuposto de que a sua forma de pensar (lógica e experimentação através dos cinco sentidos) são as únicas racionais possíveis.

Por outro lado, afirmar que certas entidades, seres sobrenaturais ou energias espirituais existem de fato, como uma verdade absoluta, e que aqueles que não as enxergam são cegos ou insensíveis por natureza ou ignorância representa apenas mais uma forma de “epistemocentrismo”, como se sua visão de mundo também fosse a única possível. 

Aliás, contrapor a frase aspeada no parágrafo anterior com respostas do tipo “e você, pode provar que Ele não existe?” é uma estratégia mais confusa do que qualquer outra, pois “provar” é uma atribuição da lógica e da ciência empírica. Logo, não se pode provar a inexistência de algo, o que seria completamente ilógico porque é impossível submetermos o que não existe à observação e à experimentação. Quem utiliza essa ferramenta argumentativa trai a sua própria forma de conhecimento, que nada tem a ver com a lógica, mas que também pode ser legítima, caso seus próprios mecanismos sejam conhecidos.

Pelo que pude perceber nas últimas semanas, são as redes ideológicas construídas pelas sociedades as que enquadram nossas reflexões a tal ponto que não conseguimos visualizar o quão demonstrativos podem ser alguns conhecimentos tidos como “meramente” espirituais (pura ideologia, sem base material). Para isso, pensemos um pouco sobre o nosso ceticismo diante da eficácia de tratamentos alternativos como a acupuntura, o reiki e a auriculoterapia.

No último fim de semana, estive num espaço para a realização de três cursos de atenção à saúde, todos ligados à medicina tradicional do Oriente. Por meio dos estudos organizados pela naturologia, que existe como graduação, mas que ainda não é reconhecida no Brasil, aprendemos em três dias de estudo alguns princípios básicos do diagnóstico integral de um ser humano, observando sua constituição (ser) e seu estado (estar).

Mediante a observação da íris (região colorida do olho), cujo conhecimento correspondente é conhecido como iridologia, pudemos entender melhor que cada pessoa possui algumas debilidades intrínsecas à sua constituição física, mental e emocional, independentemente do estado em que se encontra (se saudável ou doente). Por meio da observação da orelha, aprendemos a identificar rapidamente quais os principais problemas que estão acontecendo naquele momento com o paciente. Além do reiki, o mais “espiritual” desses tratamentos, o qual consiste na cura pelas mãos através da concentração e da transmissão energética pelo contato. 

Perceba como os orientais melhor compreenderam, ou compreendem, a integralidade dialética do ser humano (representada aqui pelo par “ser-estar”). Enquanto isso, a medicina ocidental continua tratando a pessoa apenas como ela está, negligenciando como ela é – basta observar que a maioria dos médicos brasileiros nada entende de saúde, apenas de doença.

Não importa aqui detalhar essas formas terapêuticas, mas destacar como conhecimentos normalmente relacionados à espiritualidade também podem ser sistematizados, sendo o produto desses saberes perceptíveis no próprio corpo humano. Afirmo isso porque pudemos visualizar a eficácia desses diagnósticos e tratamentos quando fomos atender a comunidade em torno do espaço em que ocorreram os cursos. 

Veja, não escrevi este texto para criticar uma ou outra forma de pensar o conhecimento humano nem para supervalorizar a medicina oriental em detrimento da ocidental. Antes de tudo, escrevi porque senti muita necessidade de compartilhar ao menos uma pequena parcela da grandiosa experiência que vivi nesses últimos dias, convivendo com diferentes concepções de vida em sociedade. Aliás, como todos os anteriores, escrevi este texto pensando em apresentar mais um debate em torno da valorização do respeito às diferenças e ao igualitarismo humano e social, defendendo a diversidade humana. Afinal, se os seres humanos são diversos, as religiões e as visões de mundo também o são, e sempre serão.

Enfim, no momento em que nos tornarmos mais atentos para outras formas de conhecimento que não apenas as consagradas pelas grandes instituições, como a Igreja, o positivismo e o Estado capitalista, os seres humanos provavelmente darão alguns saltos cognitivos que nos permitirão viver em coletividade, harmonia e sustentabilidade, em equilíbrio com os outros e com a natureza. Sem dar mais atenção aos conhecimentos “invisíveis” - ou melhor, invisibilizados -, jamais nos libertaremos das diferentes formas de dominação e hierarquização a que somos submetidos.

O que proponho, por fim, é um pensamento mais integrado, que leve em consideração as diferentes interpretações culturais (no caso, religiosas e ateias) perante situações e desafios semelhantes. Como diz o sociólogo Boaventura de Sousa Santos, um dos idealizadores do Fórum Social Mundial:
Não há nenhuma cultura que seja completa, e então é preciso fazer tradução para ver a diversidade sem relativismo, porque os que estamos comprometidos com mudanças sociais não podemos ser relativistas. Mas é preciso captar toda a riqueza para não desperdiçar a experiência, já que só sobre a base de uma experiência rica não desperdiçada podemos realmente pensar em sociedade mais justa.
Fonte da imagem: Wikimedia Commons.

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