Kubrick e a educação

Os livros da coleção “Primeiros Passos”, publicados pela editora Brasiliense, são alvo de severas críticas em relação à suposta superficialidade com que tratam os temas propostos. São livros bastante comerciais devido ao padrão encontrado em seus títulos (“O que é...”). E aqui não podemos negar que títulos como esse, se levados ao “pé da letra”, são extremamente pretensiosos e irrealizáveis em termos de “totalidade” do conteúdo, negligenciando a historicidade e a contextualização dos conceitos e definições, mas o caráter propedêutico (introdução a estudos mais desenvolvidos de determinada disciplina) desses livros é bastante proveitoso e importante para muitos iniciantes. Dentre os mais de 300 números dessa publicação, li apenas três: História, de Vavy Pacheco Borges; Dialética, de Marilena Chauí; e Educação, do antropólogo Carlos Rodrigues Brandão. Considero os dois últimos os mais completos, em termos propedêuticos, mas tentarei discorrer apenas sobre “O que é Educação”, livro que alcançou imensa popularidade, passando de quarenta edições publicadas no Brasil.

Em seu título, Brandão fala em “educação”, no singular, mas essa abordagem é o que menos se vê no decorrer da leitura. O autor destaca a multiplicidade de concepções acerca da educação e a pluralidade dos espaços em que ela pode ser encontrada. Para ele, e muitos outros, a escola não é o único lugar em que a educação se faz presente. Sendo assim, podemos visualizá-la num campo de treinamento militar, por exemplo. 

The Marine Corp, a corporação norteamericana dos fuzileiros navais prepara, sob os rígidos treinamentos do Sargento Hartman, soldados, “matadores”, capazes de enfrentar a selva e os inimigos vietnamitas. O treinamento, porém, não alcança seus objetivos homogeneizantes – apesar de seus esforços, nenhum treinamento atinge a homogeneização completa almejada –, o que gera comportamentos diferentes mesmo dentro de um grupo formado mediante sucessivas tentativas de uniformização de hábitos, práticas, pensamentos e ideias. Isso, em suma, é o que ocorre em Full Metal Jacket (traduzido no Brasil com o nome de “Nascido para Matar”), lançado em 1987 e dirigido por um dos maiores cineastas dos Estados Unidos, Stanley Kubrick.

A filmografia de Kubrick, aliás, nos ajuda a entender mais essa obra que acabou sendo o último grande trabalho do cineasta. “Nascido para Matar” não é fruto somente do trabalho exercido para a materialização deste filme especificamente; é resultado de sua longa experiência com a interdisciplinaridade na arte cinematográfica. 

“Nascido para Matar” é um filme que trata de um tema histórico, permeado de sugestões críticas, posicionamentos políticos, reflexões filosóficas e conhecimentos acerca da psicologia humana. Por isso, precisamos lembrar o trabalho realizado em “Laranja Mecânica” (1971), filme em que o diretor manobra muito bem esse conhecimento psicológico, quando demonstra implicitamente a teoria do “reflexo condicionado”, de Ivan Pavlov, atribuindo-lhe valores negativos em termos de ética e cidadania. Outros elementos muito presentes na concepção de “Nascido para Matar” foram aprimorados a partir do trabalho experimentado em “Spartacus” (1960), no qual Kubrick aprende a dirigir filmes que tratam sobre temas históricos. Kubrick, obcecado pela perfeição, estava, pois, plenamente habilitado para a direção de um filme composto por elementos e discussões historiográficas, filosóficas, psicológicas e políticas.

No filme, em meio à preparação dos recrutas para a infame Guerra do Vietnã, podemos perceber a base de treinamento como uma instituição educacional, no sentido em que os indivíduos que lá se encontravam adentraram com uma determinada visão de mundo e saíram com outra, reelaborada a partir de elementos velhos e novos em seus consciente e inconsciente. O soldado – aluno – Boyle, por exemplo, que apresentava dificuldades de adaptação, concluiu o treinamento e teve suas percepções sensivelmente modificadas após sucessivos castigos e intervenções corretivas. Apesar do desfecho vivido pelo personagem, Boyle tornou-se um recruta habilitado para o objetivo da corporação: The Marine Corps does not want robots. The Marine Corps wants killers (“o corpo de fuzileiros navais não quer robôs, quer matadores”). No final das contas, é claro que dificilmente veremos alguma dissociação entre “robôs” e “matadores”.


No entanto, seria ingenuidade dizer que a corporação – escola – inculcou uma visão de mundo una, homogênea e completamente diferente daquelas trazidas pelos recrutas – alunos. Ao analisar o comportamento pós-treinamento de outros soldados, como Joker (Hilário) ou Animal Mother (Animal), nota-se que os indivíduos não apreendem de maneira idêntica as informações transmitidas, uma vez que a apropriação dos ensinamentos depende da carga de experiências trazida por cada indivíduo. A educação, pois, não pode ser entendida como transmissão do conhecimento, mas como conhecimento construído em interação social.

Outra discussão que perpassa tanto o livro quanto o filme é a questão da educação como algo específico forjado pelas necessidades específicas de povos e grupos também específicos.

Nesse sentido, percebemos: de um lado, os EUA e o corpo de fuzileiros navais, onde a preparação militar de combate efetivo é exclusivamente masculina; e do outro, os vietnamitas, que incluíam as mulheres como soldados de guerra, mesmo porque os “vietcongues” estavam em menor número. Isto é, para a educação bélica americana, as mulheres eram incapazes de guerrear e trazer a vitória para sua nação, enquanto que para a educação bélica dos vietnamitas as mulheres também se faziam importantes. O que era impensável para uns, funcionava como solução para outros. Aqui podemos perceber tanto elementos práticos, relacionados à necessidade militar, quanto culturais.

Além disso, o próprio nome de Joker pode suscitar relevantes relações com as ideias de Brandão. A palavra joker pode ser traduzida para “hilário” ou “piadista”, mas pode também representar o curinga em um jogo de cartas, aquele que se adapta a diversas funções diferentes em um jogo. Joker, então, poderia representar, se quisermos, o próprio papel da escola: conservar, reproduzir e transformar a cultura.

Enfim, os livros da coleção “Primeiros Passos”, quando pensados a partir de sua proposta introdutória, podem desenvolver muitas de nossas dúvidas e questões iniciais nos estudos dos temas discutidos. Não esqueçamos também que esse filme instiga muitas reflexões, é claro.

As relações entre ambos foram muito elucidativas para meus estudos sobre a educação. Espero que essas reflexões ajudem mais alguém a ampliar suas concepções sobre “O que é Educação”, pois, como nos lembra Brandão,
"Ninguém escapa da educação. Em casa, na rua, na igreja ou na escola, todos nós envolvemos pedaços da vida com ela: para aprender, para ensinar, para aprender e ensinar. Para saber, para fazer ou para conviver, todos os dias misturamos a vida com a educação. Com uma ou com várias: educação? Educações."
Fonte das imagens (respectivamente): Escola do Aprender, Caminho Largo, Resenha no Divã e Wallpaper User.

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