Para a maioria das pessoas, há apenas dois sexos: o masculino e o feminino, determinados logo no início da vida de cada um. No entanto, o que acontece quando um menino nasce menina? Esse é o caso de Victor Augusto Vasconcellos, mas também é o mesmo de muitos outros transexuais no país e ao redor do mundo.
A transexualidade, muitas vezes, pode ser identificada logo na infância, mas o acesso à informação costuma tardar. O assunto, que ainda não é tão discutido como deveria, é visto como tabu, o que só contribui ainda mais para a discriminação.
Ao contrário do que muitos pensam, a transexualidade não se trata de uma orientação sexual, e sim de identidade de gênero - podendo, ainda assim, existir transexuais homossexuais, quando sentem atração sexual pelo mesmo sexo que se identificam. É como se estivesse “preso num corpo do sexo oposto”, como alguns definem. Porém, além dessa visão confusa, há outra ainda pior: a preconceituosa. Grande parte da população ainda enxerga transexuais como se não fossem homens e mulheres “de verdade”. Devido ao fato de os transexuais trafegarem entre os dois gêneros aceitos, mas não serem completamente nem um nem outro (já que se identificam com um, mas possuem o corpo de outro), acabam sendo muitas vezes apenas desconsiderados.
Desde 1997, no Brasil, já é possível mudar de sexo através de uma cirurgia desde que tenha no mínimo 18 anos, possua um laudo psicológico ou psiquiátrico e já tenha iniciado o tratamento com hormônios há pelo menos um ano. Essa cirurgia, inclusive, pode até ser feita de graça pelo SUS (Sistema Único de Saúde), o que acredito ser um grande avanço, já que a dor de não possuir um corpo que condiz com a identidade às vezes é tão grande que alguns transexuais chegam a mutilar a própria genitália eles mesmos.
Para ajudar a desmistificar o assunto, Victor Augusto Vasconcellos, estudante de pedagogia de 23 anos e pesquisador Queer, ainda no início de uma transição mulher-para-homem, fala sobre sua experiência numa entrevista exclusiva.
Muitos confundem a transexualidade com homossexualidade. No entanto, a transexualidade não se trata de uma orientação sexual, e sim de identidade de gênero. Como você definiria isso? Qual a sensação de ser um transexual?
Definiria exatamente pela identidade. Por exemplo, eu me sinto homem, independente do corpo biológico, que é considerado feminino - o que não tem nenhuma ligação com minha orientação. Acredito que essa interdependência, que se acredita existir entre sexo-gênero-orientação sexual é o que deve ser quebrado, visto que se acredita - e durante anos foi naturalizado - que o certo é um homem ter um pênis e isso o faz homem, e o que respalda isso ainda mais é gostar de mulheres, a norma heteronormativa e cissexista. Como transexual, me sinto como um homem injustiçado socialmente por não ter “n” características que marcam e definem o “ser homem”. Mas acredito que isso mude... Espero.
Você disse que há uma “norma heteronormativa e cissexista”. Poderia explicar o que seria exatamente isso?
Heteronormativa é a crença que o normal e natural seja somente a relação heterossexual e o que foge a isso seria anormal, menos válido. Cissexista é a ideia de que o mundo é constituído somente de pessoas cisgêneras* e essas são legitimadas socialmente e estão na centralidade de tudo.
*Um indivíduo é dito cisgênero (do latim cis = do mesmo lado) quando sua identidade de gênero está em consonância com o gênero que lhe foi atribuído ao nascer, ou seja, quando sua conduta psicossocial, expressa nos atos mais comuns do dia a dia, está inteiramente de acordo com o que a sociedade espera de pessoas do seu sexo biológico. Fonte: http://www.leticialanz.org/cisgenero/
O sentimento de inadequação do corpo e identificação com o sexo oposto, na maioria das vezes, costuma se apresentar desde cedo. Com que idade você começou a sentir isso?
Nunca me lembro de ter me identificado com o [sexo] feminino. E lembro de uma situação com 3 ou 4 anos, que estavam meu pai, meu irmão gêmeo (também trans mulher-para-homem) e eu, na qual meu irmão perguntou ao meu pai se ele – meu irmão – era homem e meu pai respondeu que não, que homens eram ele – meu pai –, o meu irmão mais velho e imediatamente eu respondi “e eu, né, pai? Homem igual eu”.
Você acha que a transexualidade é resultado de um fator apenas biológico ou também social?
Pode ser ambos, porém acredito que transexualidade é a demonstração de que existe diversidade, e ser homem ou mulher não está somente ligado à biologia. E acredito que somos seres atravessados pela cultura.
Como você descobriu o que era transexualidade? A identificação foi imediata?
Primeiro eu acreditava que era uma lésbica, mas notava que não me encaixava nisso. Aí descobri que era possível mudar de sexo, embora ignorando várias coisas acerca do processo. Mas com a terapia fui podendo me auto-conhecer mais e ir me aproximando dos grupos trans, especialmente de trans homens.
E você se identificou como transexual imediatamente após saber o que era ou foi se descobrindo aos poucos, com a terapia?
Imediatamente.
Como foram seus primeiros relacionamentos amorosos?
Achava que era lésbica e sempre em postura masculina.
Como costuma ser a relação de um transexual com seu órgão genital até a cirurgia? A vida sexual é prejudicada? Você sente prazer sexual?
Não me sinto muito à vontade com o fato de ter uma vagina. Acredito que [a vida sexual] não seja prejudicada, porém um pouco desconfortável. O fato de eu ter uma prótese [peniana] ajuda bastante. E sinto prazer sexual através do clitóris e da relação em si.
A mudança genital feita através de uma cirurgia é apenas o último de vários procedimentos adotados na transição. Quais os outros? O que é necessário para poder dar início às mudanças físicas? Em média, quanto tempo leva até a transição estar completa? O prazer sexual é afetado? Em que estágio da mudança você está?
Primeiro se começa via de regra com testosterona a ser liberada pelo psicólogo, o que varia um pouco de tempo para que o psicólogo libere e o transexual é encaminhado para o endocrinologista, e o mesmo pede “n” exames de sangue e geralmente ultrassonografia do útero e fígado. Após isso, se tudo estiver em ordem, receita-se a testosterona, e posterior a isso a mastectomia (retirada dos seios), histerectomia (retirada de útero e ovários) essa ultima muitas vezes é acompanhada da retirada e fechamento da abertura vaginal. E, posterior a isso, a cirurgia genital. É necessário para a mudança laudos de psicólogos - alguns pedem de psiquiatra e até mesmo do endocrino[logista]. No SUS não sei dizer bem o tempo de transição completa, pois varia muito pelas filas. Mas o laudo para as cirurgias só com dois anos de acompanhamento com psicólogo e/ou psiquiatra. Estou na pré testosterona e com acompanhamento psicológico. Dizem que [o prazer sexual] pode ou não ser afetado; depende muito de como o organismo reage e da realização do procedimento cirúrgico.
Como que você acha que o transexual é visto atualmente na sociedade?
Acho que tem dois pontos importantes a serem ressaltados. Por exemplo: ao mesmo tempo em que há evoluções e se permite falar nisso e discutir a questão, também existe uma deslegitimação social muito grande. Ainda o transexual é visto como quem está virando algo, como um gay que está virando mulher ou uma lésbica que quer ser homem.
Você acha que depois da cirurgia de readequação de sexo há, finalmente, uma satisfação ou a sensação de insuficiência ainda persiste? Como você se imagina depois da operação?
Acredito que a operação não resolve, pode aliviar o sofrimento de ser deslegitimado socialmente enquanto homem. Acredito que o que resolve é o conhecimento e aceitação que ser homem é mais do que ter um pênis ou não ter. Gostaria de fazer a cirurgia genital daqui alguns anos, talvez melhorem os procedimentos. Me imagino feliz e espero não perder a sensibilidade.
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