Mulher gosta de apanhar?

Foi numa manhã de terça-feira, num rotineiro café-da-manhã que tomava com Creusa, diarista que trabalha no meu apartamento uma vez por semana, uma jovem senhora de cabelo loiro, pele branca que contrasta com as bochechas rosadas e um sorriso infantil, que ouvi a frase “eu sofri violência doméstica por vinte e oito anos”.

Tal confissão despertou não só minha indignação, mas minha curiosidade também. Por que alguém viveria num relacionamento abusivo por quase três décadas? Muitos simplesmente proferem a falácia que “mulher gosta de apanhar”, mas eu, principalmente como mulher, me recuso a acreditar nisso, e sei que é algo que vai muito além. Para mim, “mulher gosta de apanhar” é um reflexo de uma sociedade que sempre culpa a mulher – até pela violência que ela mesma sofre –, dita por pessoas que desconhecem o que se passa nesses relacionamentos. Filhos, dinheiro, medo, vergonha, religião e até mesmo amor se envolvem e, mesmo tendo a Lei Maria da Penha para a proteção feminina desde 2006, ainda é difícil se ver livre de um relacionamento abusivo.

Creusa começou a namorar o ex-marido em 1977. Na época, ela trabalhava e estudava. “A nossa relação era ótima”, conta. Depois que engravidou do primeiro filho, o marido exigiu que ela parasse de estudar e trabalhar, e garantiu que lhe sustentaria. “Daí já veio o ciúme exagerado”. Assim que teve o filho, veio a primeira agressão, que aconteceu quando ela pediu à sogra para ajudá-la com um curativo íntimo – resultado de complicações no parto – e foi flagrada pelo marido. Creusa, que chegou a se sentir culpada, naquele momento não imaginava que aquela seria só a primeira de tantas agressões que ela sofreria por 28 anos.

É comum que as vítimas não denunciem o agressor na(s) primeira(s) vez(es). Ivone de Assis Dias, que trabalha como coordenadora na Casa Cidinha Kopcak, um centro de apoio às mulheres vítimas de violência doméstica, diz que “em geral, [a denúncia só ocorre] depois de algumas vezes em que [a mulher] foi agredida ou quando chega no ponto das ameaças de morte”, e explica por que: “São vários os motivos: falta de autonomia financeira, vergonha de denunciar ou medo, acha que ele vai melhorar se parar de consumir álcool, acha que casamento é para sempre, às vezes por motivo religioso, ele ameaça tomar os filhos...”

Muitos desses motivos foram os de Creusa. O marido só a agredia quando estava sob efeito de álcool e/ou cocaína, e justificava que era porque a amava. Em seguida, chorava e implorava por perdão. Quando estava sóbrio, “era um marido maravilhoso, carinhoso com os filhos”. Creusa confessa que era muito apaixonada, e tinha esperança de que ele pudesse mudar.  Chegou a sair de casa algumas vezes. Perdeu a conta do número de denúncias que fez contra o marido – “mais de dez e menos de vinte”, assegura –, mas nunca representou. Sentia pena. A reação de seus amigos, familiares e conhecidos em geral era de que ela estava exagerando, e que denunciá-lo era desnecessário. A mãe de Creusa, evangélica, defendia que o casamento deveria ser eterno. Além de tudo, Creusa se preocupava com os filhos, e diz que também se sujeitava àquilo para poder vê-los formados. “Hoje tenho um professor de geografia, um professor de matemática e um químico”, sorri.

Ivone de Assis Dias diz que algumas mulheres não reconhecem que são vítimas de uma violência. “Principalmente da violência psicológica e sexual, quando é forçada a ter relação sexual forçada no casamento”, ela ressalta. Creusa afirma que tinha consciência de que era vítima, mas ainda achava que tinha o dever de ajudar o marido no vício. Internou-o numa clínica de reabilitação e tentou fazê-lo frequentar desde os Alcoólicos Anônimos até igrejas evangélicas e centros espíritas, mas nada deu certo. Até que decidiu pedir o divórcio, e foi quando tudo piorou: o marido, sob efeito de álcool e cocaína, surtou. Agrediu a esposa e também um dos filhos do casal, que chegou a desmaiar. Creusa arrastou o corpo do filho inconsciente para um quarto, onde se trancou com ele e ligou para a polícia. O marido, do lado de fora, ficou batendo na porta de madeira com uma faca de cozinha até ser controlado pelos policiais. A primeira coisa que me veio à cabeça quando ouvi essa história foi o filme de terror O Iluminado, de Stanley Kubrik. Só que naquele caso, tinha sido real. E tinha acontecido com a mulher que estava sentada na minha frente. A coordenadora da Casa Cidinha Kopcak explica que, em casos de separação, os homens “quase sempre não aceitam. Acreditam que a mulher é propriedade sua.”.


Após a separação, mesmo existindo uma ordem judicial que impedia que o ex-marido chegasse muito perto de Creusa, ela foi perseguida por ele à distância. Para voltar para casa, tinha que pedir para alguém acompanhá-la a partir do ponto de ônibus. Ivone afirma que isso é algo comum. “Quando ele não aceita a separação, começa a ameaçar, perturbar e perseguir. Liga direto no celular dela, vai no trabalho dela, segue, agride na rua etc.”.

 “Toda vez que eu falava que ia me separar, ele falava ‘você vai se separar e vai continuar sendo dependente de mim, porque você não é capaz de trabalhar e ter seu sustento’”, mas a resposta de Creusa foi firme: “A partir do momento que eu me decidi, eu falei ‘eu vou [trabalhar e conseguir meu sustento], sim’. Eu vou catar latinha na rua, vou catar lixo, trabalhar de doméstica, vou fazer qualquer coisa. Mas não vou na sua casa pedir um real.”

“Até hoje ele fala que me ama”, ri Creusa. “Hoje eu sou amiga dele”, conta. “Eu não precisava passar pelo que eu passei. O que ele fez foi muito, muito triste.”. Hoje em dia, conversam sobre o comportamento agressivo do ex-marido. “Ele fala ‘não, é só quando eu bebo’”, ri. “mas ele bebe sempre”.

Atualmente Creusa não só trabalha e é independente, mas também voltou a estudar aos 52 anos e nunca mais permitiu que algum homem a tratasse de forma possessiva ou violenta. “Em cinco anos [como divorciada] eu vivi o que eu não vivi em 28 anos”, sorri. “Nada de ruim. Tudo bom.”

Fontes das imagens (respectivamente):Tailor e Fotosparafacebook.

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